Sexta-feira, 18 de Novembro de 2005

GENTE COMO TU E EU - III, 5

5. RAÚL

Tenho de resolver o problema com a Beatriz. Esta zanga está a durar mais do que devia, não posso deixar passar mais tempo, faz-me falta na cama. Desde que nos zangámos, recorri duas ou três vezes à sensaboria trivial que o corpo da Isilda tem para me oferecer. Não é que o seu corpo roliço não esteja ainda em estado apetecível para um homem, mas o seu desejo pela minha pessoa deve ser tão frouxo que sempre que me abre a pernas fá-lo com o tédio de quem está a prestar um serviço cívico e os únicos suspiros que consigo arrancar-lhe são os suspiros de alívio quando saio de cima dela.

Agora estou reduzido às recordações das cenas voluptuosas que vivi no apartamento da Beatriz. Meu Deus, que imaginação ela tinha! Conseguia espevitar todas as fibras sensíveis da minha personalidade indolente: "És um preguiçoso, Raúl Freitas, és um preguiçoso, mas a tua valquíria arranjou uma brincadeira nova e não vai querer meninos preguiçosos" exclamava ela quando eu caía pesadamente na cama, lamuriando: "Ai filha, hoje estou estoirado, aquela Repartição dá cabo de mim". Eu não estava assim tão estoirado, mas nada me excitava tanto como fechar os olhos e oferecer o meu corpo inerte ao arrojo sensual e libidinoso da minha valquíria . Que mãos!Que perícia! Habituei-me de tal maneira à criatividade truculenta da Beatriz e à lascívia das suas travessuras que, quando tenho de tomar a iniciativa, fico tão desajeitado como um rapazinho imberbe no seu primeiro dia. Deve ser por causa disso que não consigo arrancar à Isilda mais do que suspiros de alívio, da mesma maneira que não consigo arrancar a Beatriz da minha cabeça. Ultimamente, ela tinha decaído um pouco, já não se empenhava tanto em trabalhar a matéria que eu despojadamente lhe oferecia. A obsessão da maternidade estiolava a sua genealidade, os anseios de uma pacata e burguesa vida familiar estavam a desvanecer o encantamento picante da nossa relação, mas eu ainda tenho esperança de recuperar a minha antiga vida, não consigo imaginar-me reduzido à lassidão enfastiada da Isilda quando abre as pernas para me receber e às enxaquecas de recurso que pretexta para dar espaçamento às nossas actividades de alcova. Meu Deus, como a vida é complicada! Estava tudo tão equilibrado entre as minhas duas vidas, tinha conseguido construir uma empolgante existência dupla sem alterar a rotina que me é tão cara e, de repente, parece que se abriu uma janela deixando entrar rajadas ameaçadoras contra as quais não tenho energia para lutar. Apetece-me recuar no tempo, voltar à minha infância quando, no Carnaval, mascarado de Super-Homem imaginava que era invencível e sonhavam atravessar os céus em missão de salvamento da Humanidade. Já então me refugiava na puerilidade extravagante dos sonhos para colmatar a falta de iniciativa e ultrapassar a ausência de uma vontade robusta. Agora percebo por que razão, ano após ano, eram infrutíferos os esforços da minha mãe para me fantasiar de outra maneira. Sob a capa do homem voador, eu perdia todos os medos, afastava o pavor do desconhecido, não receava o desafio do inesperado. Pelo menos uma vez no ano, sabia lidar comigo mesmo.

Nos braços da Beatriz, eu fui encontrar um vigor que julgara inatingível, ela devolveu-me a confiança e a virilidade que, no meu íntimo, considerava enfermas pela esterilidade dos meus espermatozóides. O casamento com a Isilda mais não fizera do que adensar os pavores e avolumar as dúvidas de uma infância mal gerida. As fantasias da Beatriz foram a panaceia para as minhas debilidades, era como se eu tivesse voltado a vestir a capa do Super-Homem dos meus tempos de menino.

Dia após dia, juro a mim próprio que vou resolver o problema com a Beatriz, todos os dias expresso mentalmente o mesmo propósito - É hoje, hoje vou resolver o problema com a Beatriz, não passa de hoje, assim que chegar ao serviço vou ter uma conversa muito séria com ela . O problema é que mal cheguei ao serviço, já tinha em cima da minha secretária uma folha de bloco com as garatujas do Chefe de Divisão - Sr. Raúl Freitas tenho urgência em falar consigo, venha ao meu gabinete imediatamente . Lá estava ele à minha espera, sentado à secretária todo emproado, fazendo girar, alternadamente para a direita e para a esquerda, a sua cadeira preta de espaldar alto onde recostava, em atitude de estudada negligência, a cabeça de cabelos lisos, puxados para trás e crivados de gel. Imaginei-o todas as manhãs mordendo a língua enquanto, aplicadamente, de pente em riste, se entregava à árdua tarefa de transformar uma trunfa eriçada e rebelde num penteado convencional de executivo de sucesso. Imbecil presumido! Tudo nele é estudado, não tem uma única atitude espontânea, passa a vida a representar o papel de homem seguro, confiante, auto-suficiente, mas na realidade é um timorato com a cabeça povoada de fantasmas. O que eu daria para poder uma vez na vida esmurrar aquela boca desdenhosa que parece estar sempre a arremessar-me com a sua forçada sobranceria de ressabiado - Eu sou o filho do Marques, mas subi na vida enquanto tu és um medíocre que nunca passou da cepa torta . Ora, que grande coisa! Ser Chefe de Divisão num serviço da Administração Pública. No fundo, também ele é um falhado. Cursou Direito como o pai tanto desejava, mas não conseguiu ingressar na magistratura judicial, como tinham sonhado pai e filho: "É o que lhe digo Dr. Freitas, se o meu rapaz conseguir fazer o curso de Direito, e vai conseguir se Deus quiser, há-de seguir a carreira de juiz, sabe que o rapaz tem mesmo vocação para aquilo, desde pequeno que pende para tudo o que tem a ver com tribunais, sempre que a televisão passa filmes com julgamentos é vê-lo ali todo atento, até parece que bebe as palavras do juiz, eu já o estou a imaginar a bater com o martelinho e com aquela cabeleira ... ", "Ó Marques, os juizes portugueses não usam cabeleira, isso é acessório que faz parte da indumentária dos ingleses". O Marques pareceu um tanto desiludido: "Á, não usam? Mas usam aquelas vestes pretas, a sotaina ou lá o que é, não usam Dr. Freitas?", "Usam, mas não se chamam sotainas, chamam-se becas, os padres é que usam sotainas", "O Sr. Dr. lá sabe essas coisas, também não é para admirar, tem estudos e eu não", "Não é só isso, o meu pai era juiz". O Marques fez um ar de espantada comiseração: "Admira o Sr. Dr. não ter seguido a mesma carreira, o seu pai deve tir tido muita pena, ainda se o neto ... mas o Raúlzinho não tem vocação para o estudo, é uma pena!" e o meu pai que já não sabia o que é que o exasperava mais - se as boas notas do filho do Marques ou a fraqueza das minhas - respondeu desabridamente: "Olhe Marques, essa ideia de que os filhos são seguidores do percurso dos pais é completamente absurda. Se assim fosse, o seu filho estaria condenado a um lugarzinho de oficial administrativo como você". O Marques engoliu em seco, mal disfarçando o despeito e a humilhação suscitados pelo comentário do meu pai: "Infelizmente os meus pais não tiveram posses para me porem a estudar, mas com o meu Rogério não vai ser assim, não sou rico, mas o que tenho dá para ele se doutorar ". O filho do Marques conseguiu o almejado canudo e o pai derramou lágrimas de comoção ao vê-lo de braço no ar sacudindo freneticamente a pasta recheada de fitas vermelhas naquela festa tão linda onde se juntou a estudantada toda , como ele não se cansava de repetir.

Apesar do diploma, o Rogério Marques não deixa de ser um fracassado. Não conseguiu o seu lugar na jurisprudência, não conseguiu o desejado martelinho e, na ausência de réus a quem impor a sua autoridade de julgador, aqui estou eu para alancar com o peso das suas expectativas defraudadas: "Os mapas do pessoal apresentam várias discrepâncias relativamente aos do ano passado, tem de reformulá-los". Com as orelhas em brasa, interrompi-o: "Houve aposentações, transferências para outros Organismos ... ". Ele não me deixou prosseguir e atalhou abruptamente: "Se houve alterações, deveria ter anexado uma nota justificativa devidamente fundamentada, mas confirma-se a minha opinião a seu respeito - iniciativa não é o seu forte". Estendeu-me os mapas com um simulacro de sorriso tão desdenhoso que me deu ganas de apoiar as mãos na sua nuca luzidia e ... zás! Esborrachar-lhe a fuça no tampo da secretária. Em vez disso, segurei as folhas de papel, rodei sobre os calcanhares e dirigi-me para a porta, mas antes de ter conseguido alcançar a maçaneta ainda fui matraqueado pelo comando irritante da sua voz agastada: "Preciso disso pronto até às onze e meia. Às doze tenho uma reunião com o Director de Serviços". Saí sem me dar ao trabalho de responder e fui direito à minha secretária para onde atirei, enraivecido, as folhas de papel enquanto remordia, entre dentes, impropérios contra o sacana do Chefe de Divisão . Sentei-me com estrondo ignorando, deliberadamente, o Semedo que me olhava de esguelha ansioso por saber o que se passara. Tentei concentrar-me na elaboração da nota justificativa, continuando a ignorar o olhar inquisidor do Semedo e o pigarrear da sua garganta que mais não era senão a tentativa infrutífera para captar a minha atenção. Mas ele era tudo menos discreto e acabou por abordar-me com o assunto do costume: "Pst ... ouve lá, pá, já resolveste o problema com a Beatriz?" e perante o meu encolher de ombros: "Não te fiques assim, olha que o tempo passa num instante e - fez estalar os dedos - quando damos por ela, já não há nada a fazer, arranja um filho, ninguém te pode levar a mal, casamento com mulher que não pode procriar está condenado à partida, falta o principal, um lar sem filhos é como um corpo amputado", "Ó Semedo, neste momento não estou minimamente interessado na procriação, já me basta estar de cabeça cheia com a porra dos mapas do pessoal, esse merdas do Rogério Marques quer isto pronto até às onze e meia, parasita de merda!Não sabe fazer a ponta dum corno, mas dá-se ao luxo de criticar o trabalho dos outros". Com olhar atento sobre a porta, o Semedo sussurrava: "Fala baixo, pá, dizem que o gajo costuma escutar atrás das portas", resmunguei: "Não admira, com aquele ar de ratazana dos canos ... o sacana tem todo o estilo de bufo".

Apodar o Chefe de Divisão com impropérios, aliviava-me a tensão nervosa, mas não dava corpo à tarefa que tinha pela frente, por isso, meti mãos à obra e concentrei-me na nota justificativa devidamente fundamentada que a ratazana iria apresentar ao Director de Serviços com mesuras de serviçal: "Aqui tem Sr. Director, como poderá verificar, anexei uma nota justificativa devidamente fundamentada, pois verifiquei haver alterações de vulto relativamente ao ano transacto".



( continua )
publicado por mmfmatos às 12:57
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De Anónimo a 21 de Novembro de 2005
Olá estou lendo mais um pouquinho hoje estive sem net é da cabovisão mas o problema acho que era com meu computador.
Beijinhos
Até próxima leitura
Aldoraaldora
(http://gatinhosvoadores.blogspot.com)
(mailto:aldoramira@sapo.pt)
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