A Ofélia veio ter comigo, cheia de mesuras e de palavras delicodoces , aquilo que eu chamo conversa de engana tolos. Começou por falar da nossa vida passada que, na boca dela até parece que foram tempos muito felizes, era a primeira vez que lhe ouvia tal conversa. Falava com uns choramingos à mistura enquanto fungava e limpava os pingos do nariz. Não é que eu seja um sujeito desconfiado, mas também não sou tão burro que não visse logo que aquela conversa trazia água no bico e para abreviar as coisas e não dar azo a que ela me pudesse dar a volta como sempre fizera, interrompi bruscamente: "Pára lá com as lamúrias e diz ao que vieste porque eu tenho mais que fazer do que estar para aqui a ouvir a tua choradeira". Ela ganhou balanço, assuou-se ruidosamente ao lenço de papel que amachucava entre os dedos desde que começara a tentar contar-me as aflições em que se encontrava. Mais por mim do que por ela, resolvi dar-lhe uma ajuda: "Olha Ofélia, eu posso não ser muito esperto, mas dá para entender que o chulo do Octávio te deu com os penantes , andou a saltar-te para a espinha enquanto a coisa lhe deu gozo e agora que foste atirada borda fora, vens à procura do tanso a quem puseste os cornos para ver se ele cai na esparrela". Enchi o peito de ar e inchei de orgulho por poder estar ali a espezinhar a mulher que tinha atingido e rebaixado o ponto mais sensível do meu orgulho de macho. Ainda não tinha tido tempo suficiente para gozar em plenitude a vingança que o destino pusera à minha disposição quando ela, empertigando-se toda e depois de uma ruidosa assoadela, proclamou: "Estou grávida", "E o que é que eu tenho a ver com isso?" respondi todo ufano. Ela fez um compasso de espera como quem ganha balanço para uma declaração importante e, sem saber por quê, eu comecei a ficar estupidamente nervoso. Olhando-me com a soberba de outros tempos, ela exclamou: "Tem tudo a ver contigo porque a criança é tua!". Senti vontade de a esganar: "Não me venhas com essas tretas. Pai, eu! Só se for por correspondência, nem isso porque, tanto quanto me lembro, nunca te escrevi carta nenhuma. O calaceiro do Octávio deu à sola e tu agora queres um trouxa para te criar a semente que ele deixou", "Estás muito esquecido ou estás a fazer de conta que não te lembras, até parece que não te soube bem aquele encontro que tivemos há dois meses quando foste lá a casa buscar o blusão que ficou pendurado no bengaleiro um ror de tempo". Foi como se tivesse levado uma marretada na cabeça. Maldita a hora em que fui buscar o raio do blusão! Ainda tinha uma chave, entrei convencido de que a Ofélia não estava em casa, mas estava, estendida no sofá, toda perfumada e gostosona, não foi preciso muito para aqui o pató se embrulhar nas carnes voluptuosas da mulher que me traíra. Ainda por cima, o Octávio calaceiro andava ausente numas andanças por Marrocos que ele fazia de vez em quando para tratar de "negócios". A Ofélia estava carente, reduzida a uma abstinência forçada, verdadeiro suplício para uma mulher tão fogosa, e só um picha fria conseguiria resistir às investidas daqueles braços e pernas que se enroscavam à minha volta que nem um polvo. Perante a revelação que ela acabara de me fazer, ainda tentei argumentar: "Como é que tens a certeza de que o filho é meu? Pode ser do marmanjo do Octávio", "Eu sei fazer contas e, além disso, tomei sempre precauções. Só naquele dia é que não, tinha o homem fora e não estava a contar que tu me entrasses pela casa dentro ... acontece, nem pensei nas consequências, estava ali cheia de vício por uma queca , apareces tu ... quem é que se aguentava, eu sou uma mulher, não sou um saco de palha". Saco de palha é que ela não era e foi por isso que, mal dei com os olhos naquele corpo a contorcer-se na minha direcção, perdi o controle da verga e rebolei pelo chão deixando que o fogo dela me consumisse até ao tutano. E agora ali estava o resultado. Por uns momentos de prazer, tinha às costas o peso da barriga dela que não tardaria muito a crescer e a ideia que me ocorreu foi a mesma que sempre ocorre a qualquer homem nas mesmas circunstâncias - travar o crescimento daquela barriga: "Olha Ofélia, isto nunca devia ter acontecido e a vida cá para o meu lado não está fácil, o melhor é tratares já do assunto antes que a barriga comece a dar nas vistas, dinheiro para isso ainda se arranja"," O aborto, queres tu dizer?! Nem pensar! Eu quero ter este filho, já tenho trinta e dois anos e quero ser mãe. Antes nunca tinha pensado nisso e quando soube que estava grávida fiquei em pânico, mas à medida que o tempo passava a ideia começou a agradar-me, despertou qualquer coisa dentro de mim e agora este filho é tudo o que quero na vida. Aborto?! Nem penses!". A Ofélia despertava para os prazeres da maternidade. Era uma nova faceta com a qual não estava a contar e que ia baldear completamente a minha vida. No fundo, eu não era homem para fugir às minhas responsabilidades e ela sabia disso. Acabei prometendo que estaria com ela para o que desse e viesse enquanto ela me garantia que aquela criança iria mudar tudo na nossa vida. Quanto a isso, eu não tinha dúvidas, só não sabia era como iria orientar a minha vida com uma criança para sustentar e um ordenado que mal esticava até final do mês.
Embora o assunto estivesse sempre a bailar na minha cabeça, não tive coragem de contar logo à D. Etelvina, mas não me aguentei por muito tempo e, passados dois dias, lá estava eu a contar-lhe tudo sobre o encontro com a Ofélia. Ela benzeu-se umas três vezes e exclamou: "Ó homem, você não tem mesmo cabeça nenhuma! Então depois de tudo o que essa mulher lhe fez, ainda se vai embrulhar com ela?! Arranjou-a bonita, agora é que ela lhe vai sugar o dinheiro todo". No entanto, provavelmente por ter recordado a sua condição de católica praticante, apressou-se a dizer: "O problema é a criança, o inocentinho não tem culpa de nada, vocês geraram uma vida e são responsáveis por ela, vão ter de assumir o que fizeram". Eu nem me atrevi a dizer-lhe que cheguei a sugerir à Ofélia que desmanchasse o que tínhamos feito, "Bem vistas as coisas, talvez seja uma forma de você se tornar um homem mais responsável, a vinda desse anjinho talvez seja uma bênção de Deus para que você dê um rumo à sua vida". A D. Etelvina tem o condão de ver em tudo a intervenção divina e foi assim que os momentos de prazer que eu desfrutara enquanto me rebolava na carpete engalfinhado na Ofélia passaram a estar abençoados pela mão de Deus. Ele lá sabia o que estava a fazer, mas para a bênção ser completa era preciso legalizar a situação porque, dizia ela: "O anjinho tem direito a vir ao mundo no seio de uma família abençoada, vocês têm de pensar no casamento, não deixe que ele passe pela vergonha de ser filho de pais amancebados".
As coisas complicavam-se. A gravidez da Ofélia fizera com que a D. Etelvina deixasse de a ver como uma pega sem vergonha e tornara-se sua aliada, tentando empurrar-me para o clube dos homens casados. Sinceramente não me estava a imaginar como homem casado, mas à medida que ela ia falando com aquela jeiteira que tem para nos dar volta ao miolo, eu até comecei a gostar da ideia. Já me imaginava no jardim empurrando um carrinho de bebé, chefe de família, homem respeitável, até que a ideia começava a agradar-me. Não fora a chegada do Licínio e eu teria continuado completamente rendido aos prazeres da minha futura nova situação: "Ó Ramiro, aceitar o filho, se é verdade que ele é seu, é uma coisa, é a sua obrigação, mas casar só por esse motivo, aí é que eu já não estou de acordo". Bastaram estas palavras para que a minha cabeça ficasse novamente em estado de sítio, mas a D. Etelvina não deixou que a questão arrefecesse e mimou o Licínio com um olhar fuzilante: "Ó Licínio, o assunto estava bem encaminhado até você chegar, o que o Ramiro precisa é que lhe dêem bons conselhos, que você seja contra o casamento é lá consigo, mas não queira impedir que essa criança que vem a caminho tenha uma vida normal, com um pai, uma mãe e um lar. Toda a criança tem direito a crescer num ambiente saudável". Ela falou de forma tão autoritária e categórica que o Licínio não se atreveu a dizer mais nada, deu meia volta e enfiou-se no seu quarto enquanto eu ficava entregue aos conselhos da minha "professora de moral". A "ensaboadela" foi de tal maneira que, quando deitei a cabeça na almofada, já só pensava no meu futuro de pai de família e na vida que queria construir para o meu filho. Adormeci repetindo: "Meu filho, meu filho, meu filho ... ". Andei toda a noite embrulhado em sonhos confusos onde aparecia sempre afundado em fraldas e biberões enquanto a Ofélia, estendida no sofá, limava e pintava as unhas.
( continua )
Há dias vi o André sentado num banco de jardim ao lado de um rapaz que só poderia ser o tal namorado com o qual pensa um dia - passe a ironia - juntar os trapinhos. O André assumia uma postura totalmente descontraída não se furtando a óbvios gestos de ternura tal como pegar na mão do companheiro ou apoiar-lhe a mão na coxa enquanto lhe dava pancadinhas com a testa naquele estilo turra que habitualmente utilizamos com as crianças. O outro aceitava as carícias, mas tinha um ar tímido, quase envergonhado, como se não se sentisse muito à-vontade com aquelas manifestações em local público.
Uma mulher de meia-idade que passeava o seu minúsculo cão ficou especada abanando a cabeça: "Já viu aquilo? Que falta de vergonha! Por acaso, hoje só trouxe o cão, olha se eu tinha trazido os meus netos?!". Eu estava prestes a concordar com ela, mas subitamente lembrei-me da minha mãe, aquela mulher tinha os modos irritantes da minha mãe e isso suscitou em mim uma vontade desenfreada de afrontá-la. Encolhi os ombros e repliquei: "Problema deles, cada um orienta a vida como entende". Perante a cara embasbacada da outra, fiz menção de me afastar, mas fui obrigada a travar o passo quando o André, tendo-me avistado lá do canto isolado onde momentos antes arrolhava com o seu companheiro, levantou o braço numa saudação amigável, gesticulando para que eu me aproximasse. Perante o olhar atónito da mulher, dirigi-me para eles, mas ainda a ouvi dizer, puxando abruptamente a trela do cão: "É tudo a mesma seita, o mundo está perdido".
Quando cheguei junto deles, o André chegou-se um pouco mais para o seu companheiro e bateu com a mão no banco convidando-me a sentar enquanto exclamava: "Olá Fernanda, então hoje não se trabalha?", "Só de manhã, fui ao dentista e apeteceu-me atravessar o jardim, não só para encurtar caminho, mas também para respirar um pouco de ar puro" respondi num tom tão atrapalhado que mais parecia um pedido de desculpas por os ter surpreendido. Que estupidez! Afinal de contas, estávamos num local público. O André é demasiado perspicaz para não se ter apercebido da minha atrapalhação e daí a subtil ironia que me pareceu descortinar no tom da sua voz: "É, faz bem respirar ar puro, embora já não seja assim tão puro. Aqui o meu amigo universitário -apontava para os livros que ele tinha pousados no banco - teve um furo no horário e como eu, na minha qualidade de trabalhador independente, faço a gestão do meu próprio horário, também viemos gozar um pouco do tal ar puro de que você fala". Não mencionou o nome do companheiro. Não sei se o fez prepositadamente ou se foi por simples esquecimento. Naquele jeito de quem fala só para não ficar calada, retorqui: "Claro que hoje em dia há poluição em todo o lado ...". Ele enfrentou-me com uma serenidade que me fez sentir ridícula e imbecil por não conseguir ultrapassar os meus preconceitos e agir com naturalidade e, sublinhando bem as palavras, respondeu: "Aí está uma verdade insofismável, a poluição está em todo o lado, especialmente a poluição humana, como a bruxa do cão que estava ao pé de si, deve ter os neurónios todos poluídos. Antes de você chegar, já ali estava a olhar para nós, eu não acredito em bruxas, mas aquela, se pudesse, deitava-nos o quebranto e fugia montada na vassoura com medo do contágio".
Não estava longe o tempo em que eu própria teria dificuldade em admitir a possibilidade de alguma vez estar ali sentada ao lado de dois maricas que se acariciavam no recanto de um jardim público. Nessa altura, o mais provável era eu ter estugado o passo e debandado antes mesmo de poder ser avistada pelo André, mas o certo é que alguma coisa devia ter mudado porque não só estava ali, como até começava a sentir-me bem. Sentia-me satisfeita com a atitude que tomara, pela primeira vez na vida sentia-me arrojada, como diria a Judite começava a sacudir as teias de aranha que tinha nos miolos . Dei comigo a rir perdidamente porque o André tem muito espírito e, esquecida a animosidade contra a bruxa do cão , deixou a conversa fluir, sem afectações nem artifícios, divertindo-me com episódios picarescos que ele sabia descrever com a graça e a finura de um autêntico humorista. A manhã passou rapidamente e, quando me dei conta das horas, fui obrigada a despedir-me dos meus imprevistos companheiros de banco de jardim porque me aguardava uma tarde de trabalho e: " Eu não sou universitária com furos no horário, nem trabalhadora independente gerindo o meu próprio horário", concluí pondo-me rapidamente de pé e, enquanto o seu tímido companheiro apertava polidamente a mão que eu lhe estendia, o André ignorou-a ostensivamente e pespegou-me um sonoro beijo na face. Não me deixou partir sem antes fazer um convite para mais um serão lá em casa: "Combine o dia com a Judite, a feitura do jantar fica por minha conta, as meninas só têm de comer e depois arrumar a cozinha. Já sabe, comigo, mulher na cozinha só descasca batata e lava a loiça". Recordando aquilo que a Judite costumava dizer sobre as qualidades culinárias do André, retorqui: "Já sei que nunca deixa as suas amigas aproximarem-se do tacho porque lhe estragam o tempero". Ele riu: "É isso mesmo. A Judite não tem grande jeito, mas, dentro da trivialidade, ainda consegue fazer qualquer coisa, agora a Susana, Meu Deus do Céu, nunca vi tamanha nulidade!". Acenei com a mão num último gesto de despedida e fiz menção de me afastar enquanto ele recomendava: "Não se esqueça, combine com a Judite, vou fazer Chateaubriand au Paradis . Soa bem, não soa?". Encolhi os ombros: "É verdade que soa bem, não sei o que é, mas soa bem".
Assim que cheguei, apressei-me a contar à Judite o encontro que tivera, realçando o facto de ter conhecido o rapaz que presumia tratar-se do namorado do impagável André . A minha voz devia estar impregnada de alguma excitação porque ela olhou-me calmamente e respondeu: "E o que é que isso tem de especial? No caso dele, o que não seria normal era encontrá-lo com uma namorada". Apressei-me a esclarecer que não ficara minimamente chocada e que até fora um episódio bem divertido; falei-lhe da atitude escandalizada da mulher do cão e da forma como eu reagi: "Digo-te uma coisa, ainda agora fico banzada com a minha reacção e o mais espantoso é que me sinto bem por ter agido daquela forma, por ter ousado desafiar as convenções. Há uns tempos atrás, teria fugido daqueles dois como o diabo da cruz e hoje, pasme-se, ficámos os três em amena cavaqueira, os três é como quem diz, os dois, eu e o André porque o outro quase não abriu a boca, ele é sempre assim tão acanhado?", "Não sei, não o conheço bem, só o vi duas ou três vezes e, por mero acaso, tal como tu. O André nunca o introduziu na nossa intimidade, penso que o outro ainda tem problemas em se assumir, questões de família, família tradicional, religiosa, essas coisas. Além disso, parece-me um bocado inseguro. O André é diferente, tem uma personalidade muito forte".
A Judite já me tinha contado que aos dezassete anos ele batera com a porta, deixando para trás uma vida confortável em casa dos pais burgueses abastados, conservadores e intolerantes, que renegaram o filho a partir do dia em que ele os estarreceu com esta afirmação categórica: "Pai, mãe, tenho a comunicar-lhes que sou homossexual". Houve gritos, lágrima, desaforos: "Meu Deus que vergonha, pensa nas tias, na avó, nas tuas irmãs, as meninas não podem saber disto, os nossos amigos, o que vão dizer os nossos amigos, valha-me Deus!" pranteava-se a mãe. O pai avançou para ele de punho erguido, rugindo impropérios, esquecendo que os cândidos ouvidos da sua virtuosa esposa não estavam habituados a palavras obscenas: " Paneleiro, um filho paneleiro em minha casa, nunca! Os homens desta família mijam para a parede, mas não levam no cu, seu paneleiro de merda!". E foi assim que o André, único filho varão daquela casa, deixou a família já lá vão doze anos, sem que ao longo deste tempo tivesse havido o mínimo contacto, dando cumprimento às últimas palavras do pai que, enquanto a mãe choramingava, esticava o braço em direcção à porta, berrando: "Põe-te a mexer e não voltes a aproximar-te desta família porque, a partir de agora, já não fazes parte dela". A mãe ainda tentou interferir como mediadora, alimentando a esperança de que tudo não passasse de uma atitude impertinente de jovem em fase de afirmação com o objectivo de afrontar os pais: "Vamos lá com calma - e virava-se para o marido - não vais dar tanta importância a uma parvoíce de garoto, ele ainda não tem idade para saber o que quer, o que lhe faz falta é uma namorada, deixa-o arranjar namorada e logo vês como muda de ideias - e virava-se para o filho - vais ver que quando começares a namorar perdes logo essas ideias malucas, são crises da adolescência, se for preciso, arranjamos um bom psicólogo, é isso mesmo, um bom psicólogo ... ". O André não a deixou continuar e gritou enraivecido: "Não quero porra de psicólogo nenhum, nem vou andar por aí namorando gajas para esconder da família e das tuas amiguinhas foleiras que é de gajos que eu gosto". Era demasiado forte, demasiado brutal para os ouvidos de qualquer mãe, mas para a mãe do André, particularmente vulnerável às aparências e completamente subjugada às instituições e à ordem estabelecida, foi uma hecatombe, uma maldição que se abatera sobre a sua família. No auge do desespero, desfez-se em lágrimas enquanto o marido, ciente da inutilidade de outros argumentos mais válidos, partia para a violência atingindo o filho com um soco e outros lhe sucederiam se o André não tivesse fugido trancando-se no seu quarto para, logo em seguida, enfiar num saco algumas roupas e sair rapidamente daquela casa para nunca mais voltar. Deixava para trás um casal em paranóico desespero, acusando-se mutuamente da falência de educação que poderia ter ocasionado os desvios comportamentais do filho parido macho e cuja obrigação era agir como tal. Aquele filho, coroa de glória de um pai persistente e inconformado que não queria desistir do almejado filho varão, arrostando com a relutância da mulher que já dera à luz três raparigas e temia a perspectiva de pela quarta vez ter de enfrentar a piedosa comiseração de parentes e amigos: "Outra rapariga?!!! Deixa lá, o importante é que seja saudável".
Quando a Judite me contou tudo isto, eu não pude deixar de perguntar: "Como é que um miúdo de dezassete anos, menino protegido e habituado a uma vida confortável, conseguiu desenrascar-se sozinho, sem casa, sem família, sem dinheiro?", "Comeu o pão que o diabo amassou, passou fome, passou frio, fez de tudo para sobreviver e, a certa altura, teve a ajude de alguém que o recolheu, um homem mais velho". A Judite viu estampado na minha cara aquilo que eu estava a pensar - Um velho nojento que se aproveitou do miúdo em situação desesperada - e apressou-se a esclarecer: "Foi um indivíduo impecável que o tratou como um filho. Vivia com um companheiro e compreendeu bem a situação do André porque também já tinha passado pelo mesmo. Uma coisa é certa, proporcionou-lhe estabilidade, um lar e a possibilidade de continuar a estudar. Apesar de já não viver lá em casa, o André continua a ter contactos com ele, visita-o de vez em quando, ultimamente até o faz com mais regularidade porque o companheiro morreu e ele está a atravessar um mau momento".
Não sei porquê, mas estava ansiosa por voltar a casa da Judite e dos amigos. Qualquer acontecimento que alterasse a minha vida rotineira e mesquinha punha-me em alvoroço. Por isso, apressei-me a informar a Judite: "O André convidou-me para jantar, disse para combinar contigo, vai fazer um Chateaubriand Qualquer Coisa, já esqueci o nome", "Á isso são nomes inventados por ele, o prato pode ser o mesmo, mas basta alterar o tempero ou a guarnição para alterar também o nome. O Chateaubriand já foi baptizado e rebaptizado não sei quantas vezes".
O jantar ficou marcado para a semana seguinte. O André brindou-nos com o seu Chateaubriand au Paradis que, segundo ele, devia o nome ao facto de nos elevar para as alturas do incomensurável, do transcendente e misterioso mundo que está para além das nossas mentes limitadas. A Susana soltou uma sonora gargalhada e, como animal hiperracional - as palavras são dela - que sempre fora e seria, pôs termo às exaltações do amigo: "Por que será que tu não reduzes um simples naco de carne à verdadeira dimensão que ele tem?", "Porque eu sou um artista, minha cara, e artista que se preza não pactua com banalidades". Depois do jantar, a Judite e a Susana trataram da arrumação da cozinha, não autorizando que eu limpasse um prato que fosse: "Tu hoje não fazes nada, limitas-te a ser a nossa convidada, ficas aqui sentadinha, conversas com o André o que já não é pouco, aturar este gajo não é tarefa fácil".
Permaneci calada, esperando que fosse ele a tomar a iniciativa de entabular conversação e aquele compasso de espera pareceu-me uma eternidade. Sobressaltei-me ao ouvi-lo disparar à queima-roupa: "Você tem um ar oprimido". Era uma estupidez tentar negar o que era por demais evidente e, ainda por cima, com uma pessoa tão perspicaz como o André. Limitei-me a responder: "Não é só o ar, eu fui criança oprimida, adolescente oprimida e agora que sou uma mulher continuo oprimida". Ele sorriu, mas era um sorriso animador de quem tenta incutir confiança: "Não precisa de ter esse ar envergonhado, o mundo está cheio de gente oprimida, o importante é chegar àquele momento em que temos a coragem de dizer basta, é agora ou nunca! E a partir daí seguramos as rédeas da vida que é só nossa e que ninguém tem o direito de comandar", "Não é fácil - repliquei - penso muitas vezes nisso, em dar novo rumo à minha vida, mas acabo sempre por vacilar, fico amarrada ao maldito sentimento de culpa enquanto oiço as lamúrias da minha mãe e quando olho para o meu pai embasbacado naquela cadeira de rodas", "Nunca é fácil defraudar as expectativas que os outros depositaram em nós. Pensa que foi fácil para mim? Bem lá no fundo, fica sempre uma certa amargura, mas aqui estou, sobrevivi e, fazendo um balanço final, o que ganhei em termos de amor-próprio, o livre arbítrio, o direito de ser eu mesmo em vez de um arremedo de gente, compensa bem o que deixei para trás". Dito isto, falou-me dos seus projectos, do muito que esperava ainda fazer: "Por enquanto, faço umas fotografias para revistas e jornais, umas festas, casamentos, baptizados e outras merdas do género, mas não é esse o meu objectivo. Quando tenho tempo, saio por aí e faço fotografia a sério que vou compilando para um livro que tenho em mente, mas este é um projecto a longo prazo porque, antes disso, tenciono expor os meus trabalhos, material não me falta e o resto que, por sinal, é o mais difícil de obter, também há-de surgir. Eu sou optimista por natureza e confio na minha boa estrela, um dia virá em que poderei viver da minha arte sem ser obrigado a fotografar casórios e festas pindéricas para garantir o meu sustento".
Ele falou, falou e eu, ouvinte compulsiva por defeito de educação, pouco encontrava para dizer, limitando-me a alguns acenos de cabeça acompanhados de pequenas frases intercalares tais como - Pois com certeza ... acho que sim ... faz muito bem - até que a Judite e a Susana, já libertas da cozinha, se vieram juntar a nós. Suspirei de alívio porque no meio da tagarelice das outras duas mais facilmente passaria despercebida a minha inabilidade coloquial. Não é que me faltasse assunto, tinha tanto para dizer se tivesse coragem para me abrir o mostrar tudo o que calcava e remordia no íntimo do meu ser angustiado, mas o medo do ridículo, o horror que tinha à exposição pública das minhas carências, aferrolhava-me o pensamento e o diálogo. Mas eis que no meio da conversa em que cada um confessava os seus desejos mais íntimos e libertários, a Susana se virou para mim: "E você Fernanda, quais são as suas aspirações? Conte-nos alguma coisa a seu respeito, qual a coisa mais ousada que fez até hoje ou que, pelo menos, faria se soubesse que o mundo iria acabar amanhã?". Fiquei meia aturdida com a interpelação dela e gaguejei atrapalhada: "Ora, Susana, que raio de pergunta, não sei onde quer chegar?". Ela soltou uma sonora gargalhada: "Sabe muito bem, mas deixe-me pôr as coisas noutros termos. Toda a gente tem no seu íntimo fantasias inconfessadas que gostaria de pôr em prática se não tivesse a mente atrofiada por anos de educação repressiva. Por isso lhe pergunto, se soubesse que não haveria mais o dia depois de amanhã , qual seria o seu acto mais ousado?". A Judite veio em meu socorro: "Caramba, Susana, isso é um raio de uma pergunta muito estúpida, ninguém seria capaz de fazer o que quer que fosse se soubesse que o mundo iria acabar no dia seguinte, nem mesmo tu, por muito exóticos que sejam os teus gostos. Ficarias tão paralisada de medo como qualquer um de nós". A Susana gesticulava com ambas as mãos, aquelas mãos enormes e voluntariosas, retorquindo impaciente: "Ora que gaita de conversa a tua! Quando eu falei de fim do mundo, era uma figura de retórica para pressionar, ou antes, estimular aqui a nossa amiga a soltar cá para fora os anseios que forçosamente estarão recalcados dentro da sua cabeça. Só lhe faria bem - virou-se para mim - oiça o conselho de alguém que já esteve à beira do precipício, o compartimento onde armazenamos os traumas e as frustrações não se expande indefinidamente e, quando menos esperamos, esgotou a lotação e ... Bum!!! Vamos mesmo ao fundo". O cigarro que segurava entre os dedos ardera até ao filtro e ela esborrachou-o no cinzeiro bruscamente.
O André fez um gesto para que ela se calasse porque a minha estupefacção devia ter suscitado nele um certo movimento de solidariedade, mas eu fiz um esforço para vencer a timidez e exclamei: "Não, não, deixem-na falar, eu compreendo o que a Susana quer dizer e até lhe dou razão. Há montes de coisas na vida que nós não fazemos por falta de coragem, por medo das consequências, por medo de enfrentar os outros, por medo de afrontar as convenções, passamos a vida com medo de tudo, pelo menos comigo tem sido sempre assim. Tenho passado metade da vida a fugir às decisões que deveria tomar e a outra metade a lamentar as decisões que não tomei. Depois consolo-me pensando é o meu destino, não há nada a fazer, cada um é para o que nasce". Soltei um longo suspiro e calei-me aliviada, não só aliviada, mas também espantada por ter conseguido expor-me daquela maneira. Os outros também estavam atónitos com esta demonstração de coragem por parte de uma pessoa que até aí lhes parecera um tanto amorfa. O André ergueu o polegar em sinal de aprovação, mimando-me com uma piscadela de olho enternecida enquando a Susana, soltando um prolongado assobio, batia palmas ao mesmo tempo que dizia: "Muito bem, Fernanda, aí está um bom começo no sentido da regeneração, só conseguimos vencer os traumas que nos afligem conhecendo o nosso avesso porque o invólucro não engana só os outros, também engana a nós próprios ".
É estranho, mas ao regressar a casa, em vez daquele corpo sem alma com que me arrastava todos os dias, sentia que qualquer coisa estava realmente a mudar dentro de mim. Seria a tal regeneração de que falava a Susana? Talvez. Pelo menos naquela noite, sentia que o meu avesso estava leve e arejado, como se tivesse sido objecto de um longo e salutar processo de purgação.
( continua )
O assunto começou por ser sussurrado, insinuado, uma palavra aqui, outra ali, os cochichos, as meia palavras, as frases interrompidas quando eu me cruzava nos corredores com os grupinhos dos colegas mexeriqueiros sempre sequiosos de uma pequena escandaleira que quebrasse a monotonia do quotidiano. Já o assunto tinha chegado ao funcionário da portaria quando aqui o lorpa ficou ao corrente do falatório que envolvia o Chefe de Divisão e a funcionária da Informática. Á não, a Beatriz, a minha Beatriz embrulhada com o filho do Marques! Logo esse, o marrão que me ofendia com as suas notas de estudante exemplar. Não bastou humilhar-me toda a vida aos olhos do meu pai e agora ainda me roubava a mulher!
E o Semedo, esse hipócrita que já devia saber de tudo, mas jurava a pés juntos que, tal como eu, fora o último a saber, ainda se permitia lançar-me recriminações: "Eu bem te avisei, andaste no empata e ela fartou-se, um mulherão daqueles não é para se tratar com desleixo, não se apanha caça grossa com uma pressão d'ar". Eu estava de cabeça perdida: "Por favor poupa-me, cala-te com essa conversa de pasquim, eu nunca a desleixei, aquele filho da puta é que se aproveitou, fez de propósito para me provocar, o sacana persegue-me desde criança, é uma provocação, podes crer que é, mas desta vez dou cabo dele, esborracho-lhe o focinho, estou-me nas tintas para as consequências". O Semedo começou a ficar alarmado: "Ó Freitas acalma-te, fala baixo, se calhar o homem nem sabia que vocês andavam juntos", "Não sabia o caraças! Aqui sabe-se tudo, aquela ratazana já devia saber há muito tempo e agora deu o salto, atacou na altura própria e ela, a grande cabra, não se fez rogada". O Semedo tentou gracejar: "Pudera, ele é chefe, é mais novo do que tu ... se bem que, na opinião do mulherio cá do sítio, tu és muito mais charmoso, dizem que aquele cabelo penteado para trás, cheio de gel, é um nojo comparado com as tuas têmporas grisalhas e que, além disso, não tem um pingo de bom gosto, veste-se mal e usa umas gravatas horrorosas".
Longe de me acalmar, a tagarelice atabalhoada do Semedo tinha o condão de me irritar ainda mais: "Eu quero lá saber se esse grunho usa gel nas melenas e se usa gravatas que são um lixo, por mim até pode andar vestido de palhaço, agora que ele ande a aliviar os tomates em cima da mulher que me pertence, isso é que não!". O Semedo olhava constantemente para a porta e fazia-me sinais com as mãos para que eu baixasse a voz: "A mulher que nos pertence é aquela com quem casamos, as outras vêm e vão, esquece e parte para outra, o que não falta aí é bom material à espera de uma oportunidade, não precisas de ir muito longe, aqui mesmo na sala ao lado há uma que anda caidinha por ti e tem a grande vantagem de ser casada". Ele tentava aliviar a tensão enumerando as vantagens de se ter uma amante casada: "Não fazem exigências, são mais discretas, não lhes convêm encontros ao fim-de-semana nem ao fim da tarde, contentam-se com uma pinocada à hora de almoço e há sempre o cornudo lá em casa para aguentar os esgotamentos e as enxaquecas", " Ó pá, não me lixes com essa conversa! Achas que estou com pachorra para te ouvir? Depois de saber que a Beatriz se meteu debaixo daquele monte de esterco, achas mesmo que estou com pachorra para te ouvir?" gritei exasperado. Eu devia estar com um ar meio demente porque o Semedo, contrariamente ao que é habitual, remeteu-se ao silêncio e deixou-me em paz, entregue à minha cólera. Passei um dia miserável, arquitectando projectos de vingança que tão depressa me pareciam fantásticos como logo a seguir se esboroavam por me parecerem inviáveis e demasiado perigosos para a minha posição de funcionário subalterno. A meio da tarde já estava exausto, esfrangalhado, deprimido e prestes a capitular perante a inevitabilidade da derrota que me esperava. Nunca me senti tão impotente e manietado. A falência dos meus projectos vingativos era a demonstração inequívoca da minha verdadeira natureza - flácida, indolente, amorfa. Para mim próprio repetia: és um falhado Raúl Freitas, um vencido, nasceste para perder, tudo o que tocas se torna tão estéril como os teus testículos. Da exasperação inicial que me impelia para a luta, restava apenas a raiva e o rancor. Gradualmente, a combatividade foi esmorecendo até me deixar num estado de prostração que me retirava todas as armas com que julgara poder aniquilar o meu rival. Tinha tanta consistência como os heróis de banda desenhada que povoaram a minha infância, ou até menos porque estes ainda que atirados para o canto do baú, para as labaredas da fornalha ou mesmo quando acabam como cartucho no carrinho do assador de castanhas, continuam a alimentar a imaginação de muita gente.
No regresso a casa fiz o possível por adiar o momento em que teria de meter a chave na porta. Saí na paragem anterior e fiz o percurso a pé retardando o passo, detendo-me em cada montra, fingindo-me interessado nos produtos expostos, quer se tratasse de electrodomésticos ou de ampolas para a caspa. Na realidade, eu olhava para tudo sem nada ver, absorto num emaranhado de ideias desconexas, como se a minha cabeça estivesse reduzida a um monte de cacos. Tudo aquilo que me habituara a considerar como um dado adquirido na minha existência cómoda e sem sobressaltos, desabara subitamente e eu não sabia como lidar com isso, sentia-me perdido e desamparado num mundo que agora me parecia hostil e que me repelia sem eu saber porquê. Parei numa dessas lojas que vendem toda a gama de bugigangas que não servem para nada excepto para oferecer à namorada, à tia ou à avó naquelas datas em que é "obrigatório" oferecer qualquer coisa - bonequitos de loiça em todas as posições; molduras com barcos, ursos, tambores e patinhos em relevo; pequenos castiçais com velas de cheiro; ímanes para a porta do frigorífico exibindo as mais variadas formas que iam das maçarocas, beringelas e repolhos às garrafas de suma, copos com coloridos cocktails e até anafados porquinhos, vestidos como gente, ensaindo passos de dança; caixas minúsculas quadradas, redondas ou hexagonais que tanto servem para guardar comprimidos como para ornamentar a cómoda, já repleta, do quarto e que invariavelmente se oferecem à tia em idade madura, sempre acompanhadas da frase sacramental "Não sabia o que havia de comprar, a tia tem tudo, é mais uma para a sua colecção" enquanto a tia aderindo à farsa com um "Ai que gira", agradece pretensa e hipocritamente entusiasmada, sem coragem para confessar que nunca lhe passara pela cabeça fazer colecção de caixinhas de comprimidos. Penduradas nas paredes, estavam as inevitáveis tiras de pano ou de papel amarelento, com uma ripa em cada extremo, exprimindo máximas, versos e provérbios, dirigidos " À querida mãezinha, Ao melhor pai do mundo, Ao amigo do coração, Aos amigos do copo, Aos amigos do garfo, Aos atributos do chefe, À secretária exemplar ... " e entre aquele rol de imbecilidades que eu ia lendo com o único objectivo de queimar tempo, deparei com um daqueles pensamentos budistas que parecia estar ali à minha espera, espreitando as minhas desventuras, "Um homem acabrunhado não pode agir sobre a realidade. Saber aceitar os golpes da vida não significa baixar os braços". . Por natureza, sou um céptico irredutível, mas o estado de espírito em que me encontrava propiciava a capitulação, tornava-me receptivo à aceitação de manifestações esotéricas e dei comigo a imaginar a possibilidade de estar perante uma mensagem que, por qualquer desígnio mágico e obscuro, se destinava directamente à minha pessoa, qual mão invisível que apiedada com o meu desânimo conduzira os meus passos para aquela loja atulhada de quinquilharia onde os insondáveis desígnios do destino me queriam confrontar com a sageza do pensamento budista e daí retirar o alento e o conforto de que estava tão carenciado. Não sei há quanto tempo estava ali especado, de boca aberta, lendo e relendo como se procurasse digerir cada palavra, cada sílaba, assimilar e interiorizar o conteúdo do que já considerava ser uma mensagem anímica, redentora do estado de desespero em que me vira mergulhado e que singularmente começava a desvanecer-se, como se os motivos desse mesmo desespero se tivessem convertido num amontoado de futilidades. Uma voz familiar despertou-me em sobressalto: "Raúl!Que fazes tu aqui?", era a Matilde, a minha cunhada, a última pessoa que esperava encontrar. Fiquei atarantado, estupidamente atarantado porque não havia nada de repreensível no facto de eu estar ali, nem sequer tinha de lhe dar explicações, mas, de qualquer modo, não cheguei a ter oportunidade de lhe responder, dado que ela se antecipou: "Já sei, andas à procura de um presente para a Isilda, tal como eu". Um presente para a Isilda! Esquecera-me completamente do aniversário da minha mulher que era daí a dois dias, mas a Matilde não chegou a aperceber-se do meu lapso de memória e apressou-se a acrescentar: "Já que nos encontrámos, podemos ajudar-nos um ao outro, o que é que achas deste porta-chaves?". Era um porta-chaves com um canguru enorme pendorado na argola: "Não achas isso um bocado infantil para a Isilda? As adolescentes é que costumam andar com esses animais gigantescos enfiados nas mochilas" respondi já completamente refeito da surpresa que a sua aparição me provocara. Ela riu, observando o porta-chaves enquanto fazia baloiçar o canguru: "A Isilda nunca sabe onde põe as chaves, isto é ideal para ela, vê-se à distância", "Matilde, eu sei que o que conta é a intenção, mas não achas que devias oferecer à tua irmã uma coisa diferente? O boneco é patusco e o porta-chaves é um objecto que tem sempre utilidade, mas acho que devias escolher outra coisa mais ... como é que hei-de dizer? Mais ... ". Ela soltou uma gargalhada e exclamou: "Uma coisa melhor, queres tu dizer. Ó Raúl, esta não é a minha prenda, eu não sou tonta nem sovina, já lhe comprei um lenço de seda para o pescoço, entrei aqui à procura de umas gracinhas para os miúdos oferecerem à tia, sabes como ela gosta deles, o Pedro Nuno oferece-lhe este porta-chaves e a Mariana ... talvez este castiçal, o que é que achas?". Segui-lhe o movimento do dedo indicador que apontava para um pequeno girassol em metal acobreado com uma cavidade na base para encaixar a vela que o transformaria em castiçal. Abanei a cabeça em sinal de aprovação: "Acho bem, ela vai gostar, aliás gosta de tudo o que venha dos sobrinhos". Eu devia estar com um ar um tanto enfadado que ela facilmente terá interpretado como sendo uma atitude de despeito: "É normal, não tem filhos dela, agarra-se aos meus", "Claro, é normal, bom ... vou andando", fiz menção de me encaminhar para a porta, mas ela reteve-me, segurando-me o braço com um gesto afável: "Espera aí, não vás ainda, saímos juntos, é só pagar as prendinhas dos miúdos". Dirigiu-se à empregada e, enquanto esta fazia os embrulhos, perguntou-me: "E tu não compras nada? Não andavas à procura de um presente para a Isilda?". Encolhi os ombros e, tentando agir com naturalidade, respondi: "Não, entrei por entrar, só para dar uma vista de olhos, amanhã compro um perfume, fica sempre bem", "Tens razão, quando não sabemos o que comprar, o perfume é a melhor saída - olhou-me curiosa - é engraçado encontrar-te aqui, os homens não costumam entrar nas lojas só para ver, o Zé Pedro detesta, fica sempre à porta enquanto eu vasculho as lojas". Desviei o olhar, tentando escapar à perspicácia dela, tentando evitar que ela descobrisse que eu estava naquela loja porque não me apetecia entrar em casa, que estava feito num frangalho porque fora atraiçoado pela mulher com quem andava a atraiçoar a minha mulher e que, ainda por cima, me esquecera completamente do seu aniversário.
Pagas as prendinhas, a Matilde pendurou-se no meu braço e, enérgica e decidida, arrastou-me para a rua exclamando: "Já está, podemos ir embora, tenho ali o carro - apontava para a primeira esquina à direita que dava acesso a uma praceta - assim vais direitinho para casa". Falava num tom agarotado, de cumplicidade marota, como se me tivesse encontrado em flagrante delito que, neste caso, era tão somente a minha relutância em chegar a casa rapidamente. Esta intimidade que a levava a enfiar o braço no meu, apertando-o suavemente, deixava-me um tanto apalermado, tanto mais que me pareceu descortinar no seu olhar malicioso um brilhozinho cálido e ternurento.
Entrámos no carro e, em vez dos gestos tradicionais - apertar o cinto de segurança e ligar a ignição - a Matilde recostou-se no banco e, olhando-me fixamente, murmurou: "Aqui para nós, tu estavas naquela loja a queimar tempo para adiares a entrada em casa porque já não há lá nada que te atraia, a vida com a Isilda deve ser um frete, uma sensaboria". Eu estava estupefacto e tentei interrompê-la, mas ela não deixou: "Não fiques atrapalhado, eu compreendo-te perfeitamente, podes crer que compreendo, só há uma coisa que sempre me intrigou ... ", fez uma pausa e depois, olhando-me fixamente, exclamou:" Ó Raúl, como é que um homem como tu se pôde interessar por uma mulher como a minha irmã?". Abri a boca duas ou três vezes, como um peixe fora da água, tentando encontrar uma resposta adequada, qualquer coisa que a convencesse a ela e a mim: "Quando a conheci, a Isilda era engraçadinha, achei-lhe piada, pensei que, com o tempo, poderia transformá-la, transmitir-lhe os meus interesses, dar-lhe outra visão do mundo e das coisas, encaixar naquela cabeça oca algo mais do que as trivialidades domésticas que a tua mãe lhe ensinara, mas foi tudo em vão". Calei-me subitamente estarrecido com esta quase confissão que acabara de proferir. Sem querer, fora levado a abrir a minha alma, a desvendar os meus pensamentos mais íntimos e logo a uma pessoa que nunca me merecera a mínima confiança. Que loucura! Eu devia estar mesmo necessitado de apoio psicológico para assim me desarmar perante a própria irmã da minha mulher. Passou-me pela cabeça a ideia inquietante de que talvez a Matilde estivesse como se costuma dizer a tirar nabos da púcara para depois contar à irmã o que ouvira. Levei a minha desconfiança ao ponto de imaginar que talvez fosse por incumbência da própria Isilda que ela estava ali a vasculhar a minha intimidade, mas tudo se esboroou quando senti a mão dela deslizando sobre a minha nuca: "Pobrezinho ... todos estes anos ... tem sido um fardo bem pesado". Era como se o sangue dentro das minhas veias tivesse entrado em acelerada ebulição bloquendo-me os sentidos e a capacidade de raciocinar. A hipótese de a Matilde estar ali a mando da irmã em missão de espionagem para testar as minhas fraquezas, tornara-se um pormenor secundário perante o prazer onírico de sentir aqueles dedos macios escorregando na minha nuca. Uma vertigem apoderou-se de mim e um turbilhão de ideias invadiu a minha mente,"Meu Deus - pensei - ela está a atirar-se a mim!". Os meus sentidos estavam quase a capitular perante a visão da curva apetitosa que um semi discreto decote apenas insinuava, o que era mais estimulante pois traçava a fronteira entre o tacitamente consentido e aquilo que a minha voragem exploradora poderia alcançar. Um lampejo de bom senso travou o galope libidinoso que ameaçava embotar os limites da razoabilidade levando-me a confundir uma atitude puramente fraternal com uma tentativa de sedução. Finquei as mãos nos joelhos, como quem se agarra a uma tábua de salvação, e esforcei-me por afastar do pensamento a imagem capitosa daquele decote, repetindo mentalmente: "Tem juizo, Raúl, ela é irmã da tua mulher, estás a confundir tudo, ela só está a ser carinhosa contigo, carinho de irmã, homem, não sejas porco". Respirei fundo e quando me senti suficientemente calmo, resolvi quebrar o silêncio porque era urgente dizer qualquer coisa que clarificasse aquela situação embaraçosa: "Ora Matilde, não é bem assim, a Isilda ... ". Não sei bem o que ia argumentar, mas ela também não me deu tempo: "É uma chata, já sei, não te esforces para lhe arranjar qualidades que ela não tem". Foi então que resolvi afrontá-la: "E tu, por que razão casaste com o bronco do teu marido?". Longe de se irritar, ela olhou-me fixamente e, com um arrojo admirável, exclamou: "Porque tu não me quiseste e eu cansei-me de esperar". Foi como se tivesse levado um soco no estômago. Fiquei paralisado. Oscilava entre dois estados de espírito - sentia-me lisonjeado e estarrecido. A frontalidade e ousadia dela contrastavam com a minha tibieza. Era uma situação constrangedora e o mais caricato é que eu não conseguia dizer nada, limitando-me a tartamudear coisas sem sentido: "Estás a dizer que ... não é possível ...nunca pensei que ... nunca me passou pela cabeça ... ". Subitamente, consegui ganhar balanço e rematei: "Que disparate, Matilde, quando te conheci tinhas apenas dezasseis anos e eu já tinha vinte e cinco!", "E eu quando te conheci fiquei com o coração aos saltos, achei-te lindo, encantador, eras exactamente o tipo de homem que povoava os meus sonhos de adolescente e tu a tratares-me com aquela condescendência de futuro irmão mais velho - só faltou fazeres-me uma festa na cabeça - de mão dada com a Isilda toda orgulhosa por poder apresentar o namorado à família e eu ali de olhos arregalados, roída de inveja, procurando evidenciar-me e captar a tua atenção".
A Matilde falava sem cessar, acaloradamente, enquanto eu, embasbacado com a declaração daquele amor de que nunca suspeitara, estava remetido ao mais estúpido e embaraçoso silêncio. Então ela contou tudo, expôs-se completamente, sem rebuço nem recato, confessou todos os esforços que fizera para me agradar, as artimanhas que utilizava para estar sempre presente quando eu ia lá a casa, as constantes mudanças na forma de vestir e de pentear, alternando drasticamente entre o estilo mais excêntrico e o mais conservador, enfrentando as reprimendas dos pais e a chacota das amigas que estavam longe de imaginar o motivo de tais metamorfoses. Subitamente, fez uma pausa como se necessitasse de tomar fôlego e exclamou: "Sofri horrores por tua causa para no fim ouvir da tua boca ... lembras-te do que me disseste?", "Não ... não me lembro, o que é que eu disse?", "Claro que não te lembras, mas para mim ... naquela idade, foi o maior vexame da minha vida. Olhaste para mim, com aquele olhar critico do chato irmão mais velho e disseste - És uma miúda muito inconstante, dás cada reviravolta no teu visual que às vezes até penso que me enganei no número da porta e entrei na casa errada. Nunca me senti tão humilhada na minha vida, chorei toda a noite, mas, apesar de tudo, ainda alimentei esperanças até ao dia do teu casamento. Espartilhada naquele reluzente e ridículo vestido de dama de honor que me fazia sentir um embrulho de Natal, ouvi-te dizer o sim e todas as minhas esperanças caíram por terra, quase morri de desespero e jurei a mim própria que haveria de casar com o primeiro basbaque que me aparecesse, mas faltei ao prometido porque cada namorado que arranjava me enfastiava de tal maneira que acabava sempre com tudo antes de poder sequer ter algum relacionamento sério e duradouro. Quando conheci o Zé Pedro ...". Não era minha intenção ser cruel, mas saíu-me involuntariamente: "Encontraste o basbaque que pretendias". Ela deu-me um piparote atrevido na cabeça e exclamou: "Não sejas cínico, a questão é que eu já tinha vinte e dois anos, os sonhos da adolescência estavam desfeitos e entre o converter-me numa solteirona amarga e ressequida e o pedido de casamento do Zé Pedro, optei pelo que me pareceu ser o menor dos males". Deitei uma olhadela para o relógio - a Isilda e a hora de jantar - estava na hora de pôr termo àquela conversa e fi-lo da forma mais desastrada: "Vai-se fazendo tarde e já sabes como a Isilda é, a hora da refeição é sagrada, e já que te ofereceste para me deixar em casa - apontei para a chave do carro - liga essa coisa e vamos embora". Ela não se mexeu, olhando-me calma e ironicamente o que só contribuiu para aumentar a minha insegurança. Ela estava demasiado bonita e eu estava completamente desamparado, mas tentei um último e estúpido recurso: "Vamos acabar com isto, Matilde, tu tens marido e filhos, eu sou casado com a tua irmã, ambos temos compromissos, esquece tudo o que disseste e eu esquecerei aquilo que ouvi". Ela continuava com aquele olhar irónico e, surpreendentemente, ignorando o meu nervosismo, exclamou: "Não sejas pateta, que se lixem os compromissos! Aliás, quem és tu para falar de compromissos? Ou pensas que eu não sei desse teu arranjinho com uma tal Beatriz?". Fiquei gelado de pavor e de estupefacção, não conseguia articular uma única palavra, nem sequer para perguntar como é que ela sabia do meu caso com a Beatriz, mas ela não se fez rogada e antecipou-se: "O mundo é pequeno, eu trabalho com uma cunhada do Semedo e já sabes como são estas coisas, o marido conta à mulher, a mulher conta à irmã que, por sua vez, conta à colega de trabalho que neste caso sou eu". Eu devia estar com uma expressão tão lamentável que ela exclamou, num misto de troça e de piedade: "Por favor Raúl, não faças essa cara, ninguém sabe do nosso parentesco, a minha relação com a cunhada do Semedo é puramente profissional, nem sequer somos amigas, eu é que juntei as peças e foi fácil saber quem era o tal engatatão que andava a papar uma tal Beatriz que afinal é um grande coiro e já lhe anda a pôr os cornos. As palavras não são minhas, só estou a repetir o que a outra disse - apressou-se a acrescentar - mas eu sei de tudo, Raúl, até sei que inventaste uma deficiência nas trompas da minha irmã, mas não te aflijas porque comigo o teu segredo fica bem guardado.". A revelação dos meus segredos mais íntimos e a sensação de estar completamente desarmado e subjugado aos caprichos de alguém que estava a par de todos os meus podres e artimanhas, enredou-me num labirinto de ideias que oscilava entre o pânico do condenado amarrado a um saco de explosivos e o profundo bem-estar provocado pelo alívio de ter finalmente alguém com quem partilhar o pesado fardo de mentiras e angústias que vinha carregando sozinho. Não valia a pena fingir, não precisava de mais subterfúgios, ela sabia de tudo e, como um náufrago que desiste de lutar contra as vagas que não consegue vencer, murmurei vergado pela humilhação e a vergonha: "Não sei o que dizer, deves fazer de mim uma triste ideia e com razão ... ". Ela não me deixou continuar e, colocando-me o dedo indicador sobre os lábios, murmurou: "Chiu, não digas nada, não preciso de justificações, cada um se defende como pode, toda a gente mente neste mundo de hipócritas, é uma questão de auto defesa, se os outros nos aceitassem como somos, não teríamos necessidade de mentir", e soltando uma risada acrescentou: "Começa logo na Maternidade quando visitamos um recém-nascido todo vermelhudo e enrugado e dizemos - Ai que lindo que ele é! Os olhos são da mãe, a boca e o nariz são do pai. Acompanhei o riso dela, aliviado e estranhamente feliz, como se o peso de tantos anos de farsa e desamor tivesse ruído com a eficácia de um edifício arrasado por implosão. Depois, respirei fundo e, atirando a cabeça para trás, cerrei os olhos e deitei fora o ar que inspirara, numa pose de abandono e relaxamento enquanto pensava - Quem me dera que este momento durasse eternamente. Uma mão atrevida deslizou-me pelo peito e eu abri os olhos sobressaltado, sem tempo nem ânimo para evitar o contacto daqueles lábios macios que se apropriaram dos meus, primeiro suavemente e depois com uma voracidade estonteante que me deixou desvairado como se o meu corpo tivesse sido atirado para o reboliço de um carrossel em rodopio. Aturdido entreguei-me à sofreguidão daquele beijo enquanto a mão dela ganhava terreno numa trajectória descendente que me embotava os sentidos e a razão. Um turbilhão voluptuoso e sublime apoderou-se do meu corpo e, apesar da exiguidade do espaço e da incomodidade da posição, a perícia daquela mão que a Matilde conduzia, sem pudor, no sentido da braguilha das minhas calças, fez-me sucumbir à vertigem daquele momento mágico. Foi intenso, mas rápido como um fogacho. Não sei se foi cobardia, recato ou bom-senso que me levaram a travar rapidamente a mão da Matilde e a afastá-la de mim com um gesto brusco, gritando: "Pára com isso, Matilde, estás louca ou quê?!". Ela afastou-se com um safanão enraivecido: "E tu, o que é que se passa contigo? Não te agrado? Preferes essa vaca que te pôs os cornos?". Não gritou histericamente como seria de esperar face à humilhação que acabara de sofrer, mas na sua voz havia um misto de rancor e de mágoa que me sensibilizou e fez lamentar a forma abrupta como me comportara: "Não Matilde, não é nada contigo, tu és uma mulher espantosa, o problema sou eu, ainda tenho a cabeça muito baralhada, preciso de assentar ideias - esbocei um sorriso contrafeito - eu não sou homem que se atire para a frente sem conhecer primeiro o terreno que pisa. Hoje tive um dia tramado e foi óptimo ter-te encontrado, a conversa que tivemos parece ter mudado todo o cenário da minha vida, mas agora tenho de pôr as peças no sítio para voltar a estruturar toda a confusão que vai aqui dentro" concluí apontando para a minha cabeça. Ela voltou a aproximar-se e, afastando-me o cabelo da testa, sussurrou: "Está bem, eu espero, já espero há tantos anos - com o dedo, desenhou um círculo na minha testa - põe os neurónios em ordem e, quando estiver tudo arrumadinho aqui dentro, vais chegar à conclusão de que adiar as coisas não resolve os problemas da vida. Sabes qual é o teu maior problema? É o sentimento de orfandade. No fundo, nunca deixaste de ser o menino único dos papás e sentes-te perdido sem o regaço materno, mas agora tens alguém que estará sempre disposta a acolher-te no seu regaço - myself ", "Eu não sou um rapazinho, Matilde, tenho quarenta e dois anos, não tenho propriamente idade para me refugiar no regaço de alguém que eu conheci quando ainda não passava de uma garotinha rebelde e arrapazada", "Rebelde e arrapazada -repetiu ela - foi o trauma por ter nascido rapariga quando o meu pai queria um rapaz. Se ele não estivesse a contar com o filho varão, eu nunca teria vindo a este mundo, a Isilda foi sempre a preferida dele, a menina prendada e obediente, eu só ganhei estatuto quando casei e lhe dei um neto para compensar o filho que não teve, eu quase não tenho autoridade sobre o garoto porque ele estraga-o com mimos, compra-o com prendas, com a Mariana é diferente, embora tente demonstrar o contrário, é bem evidente a preferência que ele tem pelo Pedro Nuno". Ficou subitamente pensativa como que a recordar algo muito distante e murmurou: "Engraçado ... disseste que eu era arrapazada e isso traz-me à memória um pormenor curioso - só comecei a usar saias a partir do dia em que te conheci, os sacrifícios que eu fiz por tua causa!".
Desatámos a rir ao mesmo tempo e eu acabei por lhe suplicar, gracejando: "Por favor, Matilde, põe o carro em movimento e leva-me para casa antes que a tua irmã vá à policia participar o meu desaparecimento, mas não quero deixar-te, e agora estou a ser muito sincero, não quero deixar-te sem que fiques bem ciente da importância que teve para mim este encontro, eu estava um farrapo e, graças a ti, sinto-me outro, nem imaginas o alento que me deste!". Um sorriso gaiato e a advertência: "E eu vou cobrar, podes crer que vou cobrar. Tu és meu desde o dia em que te vi, já lá vão dezassete anos e continuo com a mesma sensação de ter deixado qualquer coisa incompleta, é a tal história dos sonhos que não se concretizam e que nos deixam sempre a pensar Como teria sido se eu tivesse feito isto ou aquilo? Muitas vezes, durante os primeiros anos de casada, sonhava que estavas deitado ao meu lado e quando acordava - fez uma pausa respirando fundo - caramba, Raúl, nem imaginas a desilusão que eu sentia quando me apercebia de que tinha outro homem na minha cama e que tudo não passara de um sonho. Depois resolvi conformar-me com a situação, repetindo para mim própria que era uma mulher casada, que tu eras o marido da minha irmã, que tinha dois filhos que tu nunca me poderias ter dado, todas essas tretas que argumentamos quando queremos que a razão se sobreponha aos sentimentos e o que é certo é que funcionou, deixei de sonhar que te tinha na minha cama. Funcionou até ao dia em que soube do teu caso com essa tal Beatriz, foi uma reviravolta que voltou a abanar tudo cá dentro, eu não ia perder-te pela segunda vez, por que razão ela e não eu quando afinal fui eu que te vi primeiro!". Esboçou um leve sorriso, um sorriso tímido, ligeiramente inseguro, e concluiu: "Quando te conheci tinha dezasseis anos, agora tenho trinta e três, está na altura de resolver isto de uma vez por todas. Tal como tu, preciso de arrumar as ideias, juntar os cacos que ficaram da minha adolescência para saber ao certo se aquilo que restou não passa de uma obsessão pelo desejo insatisfeito ou se, pelo contrário, é um sentimento suficientemente forte para decidir mudar o rumo da minha vida".
Ela pôs o carro em movimento e, durante o pequeno percurso que distava do local onde nos encontrávamos até à porta da minha casa, poucas palavras trocámos, limitando-nos a simples banalidades sobre o trânsito e o tempo. Despedi-me com um Até breve, ao qual ela respondeu: "Até amanhã e pensa em mim". E eu pensei, deitado de costas, com os olhos fixos no tecto do meu quarto, toda a noite pensei nela.
O Licínio anda muito macambúzio, quer contar aos pais os projectos que tem para o futuro, mas ainda não arranjou coragem. Eu compreendo o problema dele, por um lado não quer desiludir os pais, mas por outro também não quer desistir do sonho da sua vida e até está certo, a vida é dele não é dos pais. Um dia os velhos morrem e o Licínio lá fica em Lamego, casado com a filha do farmacêutico, de quem nunca gostou, pai de filhos que não desejou e a ensinar garotos que nem sequer estão interessados em ouvir o que ele tem para dizer. Em tempos, até eu achei que seria bom para ele ficar ao pé dos pais, constituir família e ensinar a tal Biologia na escola de Lamego, mas agora já lhe dou razão, não viemos a este mundo para viver os sonhos dos outros, não andamos cá para ter uma vida de empréstimo. Ora aí está uma coisa em que os bichos são mais espertos do que os humanos que querem os filhos atrelados a eles para a vida toda. Os bichos não, criam os filhos, ensinam-nos a caçar e largam-nos na floresta para que sigam o seu caminho. A D.Etelvina olha-me com uma tristeza que eu nunca lhe tinha visto: "Pois é, criam-se os filhos e eles debandam, nunca mais querem saber dos velhos que acabam sós e abandonados, de que serve ter filhos, afinal?", atrevi-me a perguntar: "Como o seu Armando, é isso que quer dizer?". Os olhos dela ficaram muito brilhantes e não era de alegria, pela primeira vez aquela mulher rija e autoritária deixava que lhe visse lágrimas no olhar, pela primeira vez demonstrava a mágoa e o vazio pelo filho ausente, pelos netos que mal conhecia, pela família lá longe que só se deveria lembrar dela quando metia no envelope as fotografias e a carta dizendo que estavam bem de saúde, mas todos muito ocupados, tão ocupados que não dava para " ... ir até aí como gostaríamos, a mãe compreende ... os rapazes ... o trabalho ... talvez para o ano que vem ... a mãe já sabe, se precisar de alguma coisa, é só dizer, nós cá estamos para o que for preciso ... ". Coitada da D. Etelvina! O que ela precisava era da presença deles, mas o seu Armando só deve meter o pé no avião quando tiver de vir ao funeral da mãe, fechar a porta da casa e entregar a chave ao senhorio.
Como um relâmpago, veio-me à ideia a imagem da minha própria mãe quando me dizia naquele tom magoado: "Estou para aqui abandonada, vens cá tão pouco!". E eu sempre a inventar desculpas. Afinal que moralidade tinha eu para criticar o Armando, lá longe no Canadá? Eu estava bem mais perto e deixei a minha velha à mercê da boa vontade dos vizinhos que sempre lhe chegavam qualquer coisa. Senti a garganta apertada como um novelo, uma opressão no peito e uma mágoa tão grande que quase explodi em pranto. Consegui controlar-me e, para consolar a outra, meio engasgado no meu próprio desgosto, gaguejei: "O Canadá não fica ali ao virar da esquina, é difícil, tem de compreender, veja eu aqui mais perto e era raro pôr os pés lá na terra, é assim a vida, o tempo vai passando e a gente sempre a adiar, vou amanhã, vou depois, é assim a vida". Ela olhou-me muito séria: "E agora não tem pena?", as palavras saíram-me a custo: "Tenho D. Etelvina, tenho muita pena, mas agora já não há nada a fazer, já não há remédio". O tal novelo voltou a apertar-me a garganta até que explodiu num soluço que foi quase um grito. A D. Etelvina passou-me um braço pelos ombros e sacudiu-me vigorosamente: "Então homem, o que é isso? Ó Ramiro eu nunca o vi assim, tenha calma, homem! É como você diz, a vida é assim, se adivinhássemos as coisas, não tínhamos de que nos arrepender, fazíamos tudo certo, não cometíamos erros, mas não é isso que se passa, umas vezes acertamos outras não, não podemos passar o resto da vida a carpir mágoas passadas". Voltou a sacudir-me os ombros, num gesto quase maternal: "Então, sente-se melhor? Às vezes é bom desabafar, ficamos com a alma mais limpa". Estava um bocado envergonhado, mas ao mesmo tempo sentia um certo alivio, como se tivesse há muito tempo dentro de mim qualquer coisa fermentada que me roía as entranhas e que, subitamente, saltou cá para fora, deixando-me mais leve, com a alma mais limpa, como ela disse. Respirei fundo: "Estou melhor, isto foi um desabafo, desculpe lá, não sei o que me deu". Ainda ficámos um bocado a conversar, mas nem ela falou mais do seu Armando, nem eu falei mais da minha velha. Ela tem razão, carpir mágoas passadas envenena a vida.
Aquele jantar em casa da Judite foi algo de estranho e assombroso na estreiteza dos meus horizontes. Os amigos com quem ela partilha o apartamento não têm nada a ver com os modelos que eu tenho esquematizados na minha cabeça. Depois do jantar, primorosamente confeccionado pelo André, a Susana preparou o café enquanto a Judite, indiferente aos meus protestos, me estendia um copo de um qualquer digestivo que, citando as suas próprias palavras, dava uma boa disposição do caraças . Não estou habituada a beber e já estava meio estonteada com os dois copos de vinho que bebera à refeição, mas não quis dar parte de fraca. Encolhida numa ponta do sofá, beberricava pequenos goles ouvindo-os tagarelar com o maior à-vontade sobre todos os assuntos proibidos, exibindo-se com arrojo e desfaçatez na plenitude dos seus gostos exóticos. Ela tanto falava dos homens com quem se relacionara como exaltava a arrebatadora paixão que vivera com uma artista dos nossos palcos. Ele parecia mais moderado, mas à medida que a bebida lhe desaparecia do copo, a língua começou a soltar-se dando lugar a confissões despudoradas e à derrocada de todas as defesas que até aí tinham preservado a sua intimidade. Confessou abertamente não sentir a mínima atracção pelo sexo oposto. Gostava das mulheres como amigas, mas a simples ideia de ter um corpo nu de mulher deitado ao seu lado provocava-lhe náuseas. Era uma repulsa instintiva que sentia desde a mais tenra idade: "Não é que eu me lembre, mas até na teta da minha mãe me deve ter custado a mamar" ironizava enquanto a Judite o repreendia: "Não sejas parvo, os homossexuais até costumam ter uma relação muito forte com as mães e vê se te moderas porque aqui a Fernanda já está apavorada". A Susana aplaudia soltando fortes risadas que lhe sacudiam todo o corpo, um corpo robusto de ossatura larga e parco de carnes. Mais alta do que a média, ela tem a compleição de uma atleta e caminha com a postura de alguém que sabe chamar a atenção daqueles com quem se cruza. Eu começava a sentir-me desconfortável, mas tentei disfarçar, balbuciando desajeitadamente: "Pelo amor de Deus, estejam à vontade, eu não sou nenhuma ingénua!". O André olhou-me com um sorriso cáustico: "Ingénua não será, mas preconceitos não lhe devem faltar. Neste preciso momento, deve estar a pensar mas que bicha tão escabrosa! ". Acompanhei as suas gargalhadas estridentes, mais por falta de coragem e por vergonha de mostrar o quanto me sentia contrafeita e pouco à vontade do que pelo comentário em si. Tentando parecer natural e arrojada, ripostei: "Já há quem mude de sexo, quem não se sente bem dentro do corpo com que nasceu, o melhor que tem a fazer é mesmo mudar", "Mas eu lido muito bem com o sexo que tenho, só não o uso da forma dita convencional. Esses indivíduos que se fazem mutilar e se enchem de silicone, são homossexuais que não têm a coragem de se assumirem como tal, daí a necessidade de se esconderem num corpo de mulher. Transexuais, drag queens e outros trastes do género, que fauna é essa afinal?", com o copo estendido na minha direcção e os olhos semicerrados, ele afirmava: "São uns desajustados que não se conseguem definir, pensam que um bom par de mamas e uma bunda avantajada bastam para resolver o problema que têm entre as pernas, mas estão redondamente enganados porque, por muito que cortem, fica sempre por resolver a questão aqui dentro - e batia com o dedo na cabeça - se houver conflito aqui dentro, não é o bisturi que irá resolver a questão".
Involuntariamente, lembrei-me da minha mãe, há tempos, frente à televisão, enojada perante uma manifestação gay onde uma jornalista extremamente jovem fazia atabalhoadamente o relato da situação - Concentração às portas da Assembleia, homossexuais e lésbicas reclamam os mesmos direitos dos casais heterossexuais, querem ver reconhecida a união de facto, querem que lhes seja reconhecido o direito à adopção de crianças, empunham cartazes mais ou menos contundentes, é uma grande manifestação esta que se verifica hoje às portas do hemiciclo, os manifestantes não se furtam à troca de beijos e de carícias que parecem escandalizar alguns transeuntes mais conservadores - a minha mãe abana a cabeça, cruzando os braços sobre o peito: "Este mundo está perdido, aonde chegou a pouca-vergonha! Deviam trancar estes mariconsos e estas relaxadas em qualquer sítio onde não nos envergonhassem a cara!".
Deixei a casa da Judite embrulhada numa tal confusão de sentimentos que, ao enfiar a chave na fechadura da porta, só desejava refugiar-me na quietude do meu quarto para evitar recriminações e comentários do género - Acabou tarde esse jantar, já estava a ficar preocupada, havia muita gente? Essa tua colega vive sozinha? Para a próxima vê se telefonas ... . Teria de inventar qualquer coisa pois seria de todo impossível dizer-lhe - Não, a Judite não vive sozinha, partilha a casa com um rapaz que é maricas e com uma rapariga que é assim assim. De qualquer maneira, seria sempre difícil de explicar o facto da Judite viver sob o mesmo tecto com um homem que não era nem seu marido nem seu irmão. Atravessei a sala apressadamente onde se encontravam a minha mãe e a vizinha coscuvilheira, sentadas lado a lado, ambas embevecidas e absortas com as intrigas da novela. O efeito anestésico dos dramas televisivos jogou a meu favor, nenhuma delas desviou os olhos do pequeno ecrã e eu pude esgueirar-me para o quarto sem interpelações, fechando a porta atrás de mim muito de mansinho para não desafiar a sorte.
No dia seguinte, enquanto passava em revista a agenda do patrão, não consegui evitar o comentário: "Judite, nunca te sentes constrangida?", ela olhou-me de soslaio e, fazendo-se desentendida, perguntou: "Constrangida com quê?", eu continuei a custo: "Quero dizer ... com esta situação ... a conviver assim ... ". Atrapalhada e sem coragem para continuar deixei a frase em suspenso, "A conviver com uma fufa e um maricas, queres tu dizer! Se é isso que pensas por que razão não o dizes, mulher? Ficas sempre a meio de tudo!". Senti-me envergonhada com a frontalidade dela e com a minha cobardia. Gaguejei: "Não precisas de ser tão bruta, não era bem isso que eu queria dizer ... ", mas a Judite não dá tréguas: "Era sim, mas como sempre ficas nas meias-tintas, não consegues afirmar ou negar seja o que for, ficas sempre pelo talvez, mas para teu esclarecimento, a Susana não é fufa, digamos que se entrega aos prazeres da vida sem reservas, venham eles donde vierem. Como ela diz - é preciso experimentar de tudo para se saber o que é melhor . Quanto ao André, o facto de ser homossexual, não faz dele melhor ou pior como pessoa, é um homem que gosta de fornicar com outros homens, só isso. Conviver com eles é tão simples como com quaisquer outros e podes crer que é bem mais fácil coabitar com aqueles dois do que viver como tu, paredes meias com uma insuportável mãe possessiva e um pai inválido e ditador". Senti a cara em brasa. Intensionalmente ou não, a Judite tocara no meu ponto nevrálgico, viver com os meus pais era asfixiante, sentia-me tão manietada como se tivesse enfiada num colete de forças. Respondi humildemente: "Tens razão, a minha vida mete dó". A Judite deu-me um safanão: "Credo mulher! Isso é auto flagelação, não sejas tão depressiva, sai de casa e pronto!", "E vou viver para onde? Não tenho dinheiro para arranjar uma casa", "Partilha a casa com uma amiga ou um amigo, de peferência", "Eu não tenho amigos, Judite", "Não é possível, toda a gente tem amigos, quanto mais não seja dos tempos de escola", "Os meus pais nunca me deixaram levar colegas da escola para casa e muito menos ir a casa deles. A pouco e pouco, deixaram de me convidar porque os meus pais nunca me deixavam ir, nunca convivi verdadeiramente com os colegas de escola, nunca consolidei amizades. Quando a escola acabou, não ficou nada, perdi o pouco contacto que tinha com eles, nunca mais os vi", " Esses teus pais deram-te cabo da vida, foi uma castração total". Senti um arrepio, era isso mesmo, uma castração total e agora não sabia o que fazer da minha vida, sinto um vazio enorme dentro de mim, como se pairasse num mundo de nada, cada vez o sufoco é maior e todos os dias dou comigo a pensar - tenho de mudar a minha vida. " Pois é Judite, gostaria bem de mudar de vida, mas não sei como", "Corta as amarras, mulher, corta as amarras e vai em frente, não deixes que a vida te passe ao lado. O teu problema é que tens medo de arriscar, nunca tiveste namorado?", "Tive, mas um dia fugiu", "Se te parece! Assustou-se com a carga", "Ele dizia que a minha casa tinha um ambiente muito triste, muito soturno, foi-se desligando aos poucos e um dia desapareceu de vez", "Assim sem mais nem menos, sem uma explicação?", "Começou com aquelas histórias de não haver entre nós afinidade de interesses, que nos faltava aquela química indispensável num casal. Isto era o que ele dizia e aqui a trouxa sem perceber que o que ele estava era a dar o fora". A Judite lançou-me aquele olhar de comiseração que me gelava o sangue: "Pois é, esse gajo devia ser um grande traste, mas também te digo, enquanto não deixares aquela casa (e abanava a cabeça) não sei não, com o tempo ainda viras múmia". Encolhi os ombros, esboçando uma espécie de sorriso: "Deixa lá, é para não destoar dos outros dois", "Pois é, deixa-te andar, o tempo vai passando e quando deres por ela já não há remédio, um dia olhas para o espelho e não vais gostar do que vês - pele baça, pés de galinha, pescoço de peru e o pior de tudo é que serão rugas sem história porque passaste pela vida como cão por vinha vindimada".
Talvez a Judite pretendesse espicaçar-me o amor-próprio, incentivar-me para a luta, mas para alguém que nascera sob o signo da derrota, as suas palavras eram pedradas que, em vez de me espevitarem, me amarfanhavam ainda mais. Apeteceu-me ser cruel e, com um risinho mordaz, retorqui: "E tu, Judite, quais são os teus grandes objectivos? Caçar um velho rico que te possa pagar as plásticas? Há-de ser um grande consolo olhar para o espelho, sem rugas nos olhos, nem pelancas no pescoço, mas ter na frente um velho carcomido que mija fora da sanita e se peida quando tosse! E se, ainda por cima, o tal ricaço nunca te cair na rede? Vais passar o resto da tua vida partilhando aquela casa com uma machona e um maricas que te monopoliza a cozinha?".
A Judite corou até à raiz dos cabelos e só então me apercebi que, apesar de ser firme como uma rocha, ela também não era totalmente imune às fraquezas e inseguranças que assaltavam os seres pusilânimes como eu. Esta descoberta deixou-me maldosamente feliz, mas arrependi-me logo. Em mim, o arrependimento, longe de ser uma virtude, é antes um estado de espírito e daí a necessidade atávica de passar a vida a desculpar-me perante tudo e todos. Senti-me mesquinha e envergonhada. Procurando remediar a situação, tentei gracejar: "Não faças caso, tu és uma rapariga cheia de recursos e vais conseguir dar a volta por cima", "Não tenhas dúvida, eu não vou perder o meu tempo e envelhecer a ler o horóscopo, como tu, à espera que ele me anuncie a chegada do príncipe encantado que, entretanto, já se deve ter perdido numa manhã de nevoeiro", exclamou ela em tom agreste e já na posse da sua habitual segurança.
Se a Beatriz não tivesse encontrado no cabeleireiro aquela colega de escola, talvez a nossa relação não tivesse descambado desta maneira, mas o facto é que encontrou e eu imagino a conversa da outra tecendo loas às maravilhas da vida familiar, ao seu casamento abençoado com os dois rebentos de sonho , frutos do amor, dois filhotes encantadores que semeavam alegria e eram o orgulho de toda a família . Não contente com a explanação do seu idílico quadro familiar, a outra atirou com a pergunta sacramental: "E tu, Beatriz, continuas solteira?", "Sim ... " respondeu a medo, levemente insegura, quase envergonhada, "Tenho alguém, mas ... por enquanto, não quero compromissos, a vida a dois é complicada". A outra ajeitou-se na cadeira e, entre as borrifadelas de laca com que o cabeleireiro lhe pulverizava a cabeça, lançou-lhe em tom quase desdenhoso: "Deixa passar o tempo e logo vês o trambolhão que apanhas, não há nada mais bonito do que a vida a dois, o casamento, os filhos, não há nada melhor, não sabes o que estás a perder, casa-te mulher, casa-te, aqui onde me vês, namorei um ano o que já estava a ser tempo demais para mim, engravidei aos vinte anos e antes da barriga começar a crescer já eu estava no altar, levei o filhote ao casamento sem ninguém saber, só eu e o maridão" exclamou, soltando risadinhas eivadas de orgulho. Enquanto o cabeleireiro foi buscar o espelho para lhe mostrar a retaguarda do penteado, ela sussurrou: "E esse alguém que tu tens é livre?" e a Beatriz gaguejou: "Não ... é ... é casado, mas está a pensar deixar a mulher, é um casamento sem futuro, completamente desgastado", "Têm filhos?" pergunta a outra, "Não, a mulher não pode","Então, se não a deixa é porque anda a encanar a perna à rã, livra-te dele e vai à procura de outro, mas despacha-te porque não há muito por onde escolher para uma mulher de trinta anos, o que é bom já está agarrado e o que resta é só refugo".
A Beatriz ficou em pânico depois daquela ida ao cabeleireiro. Subitamente, os seus trinta anos adquiriram um peso insuportável, como se só então se tivesse apercebido de que o tempo lhe fugia e foi, nesse preciso momento, que a nossa relação sem compromissos começou a ficar minada pela insatisfação. Foi como se ela tivesse acordado nesse dia e exclamasse frente ao espelho: "Meu Deus, tenho trinta anos! Estou a ficar fora de prazo". Eu a pensar que era o Semedo que lhe andava a meter coisas na cabeça e afinal tudo começou com aquela ida ao cabeleireiro: "Estás redondamente enganado, Raúl Freitas! Já há muito tempo que eu não me ando a sentir bem com esta situação, não foi o encontro no cabeleireiro, há alturas na vida em que despertamos para a realidade, em que desistimos de enganar os nossos próprios sentimentos. Eu tinha a verdade à frente dos olhos, só que não queria vê-la. Decididamente, não quero envelhecer assim, não quero continuar a ser a tua mulher das horas vagas", "Ora, Beatriz, não me venhas com letras de cançoneta barata!", "E tu, não me venhas com as tuas tiradas de intelectualoide de pacotilha, digo e repito, acabou-se a diversão, quero uma vida a sério, com casa, marido e filhos". A ideia de casamento já lhe andava a germinar na cabeça, mas o encontro com a tal colega de infância acelerou as coisas e engrossou os desejos de um lar tradicional com marido, filhos, cão, gato, pássaros e fins-de-semana em família - idas à praia nos dias quentes, deambulações pelos centros comerciais nos dias de chuva. Dei comigo a imaginar-me enchouriçado nas bichas da ponte a caminho da Costa da Caparica ou suportando heroicamente os encontrões dos magotes ululantes que invadem os centros comerciais. Se esta visão de futuro me era insuportável, havia algo bem pior, algo que me deixava paralisado de terror - haveria de chegar o momento em que a Beatriz, vendo que não conseguia engravidar, iria querer aprofundar a questão, saber por que motivo não se concretizava o seu anseio desenfreado de ser mãe e quando esse dia chegasse ... bolas! Parece que o mundo apostou desabar em cima de mim. Ela não irá acreditar que eu desconhecia a minha esterilidade. Como é possível eu explicar-lhe que andou perto de dois anos a tomar a pílula para combater os meus espermatozóides inofensivos?
A Beatriz insiste em dizer que este encontro não teve nada a ver com a sua mudança de atitude em relação a nós pois já há muito que vinha sentindo um certo desconforto e um enorme vazio na sua vida, mas eu continuo a amaldiçoar aquela ida ao cabeleireiro e a tagarelice broeira da tal colega de infância que sacudiram desastrosamente, qual sismo violento, a pacatez do meu quotidiano. Depois da última discussão que tivemos sobre o assunto e após alguns dias em que nos ignorámos mutuamente, limitando-nos ao estrito relacionamento profissional que não fosse possível evitar ou que não pudesse ser tratado por interposta pessoa, resolvi dar o primeiro passo numa tentativa desesperada de pôr fim à abstinência sexual a que estava condenado desde aquele almoço no restaurante em que a Beatriz me deixou vergonhosamente amarfanhado entre os estúpidos crustáceos e a dentuça escarninha do empregado. Aproveitei a ocasião quando a encontrei no elevador com uma rima de listagens debaixo do braço, exibindo uma expressão de sobranceiro profissionalismo que eu interpretei como um entre nós não há mais conversas . Mesmo assim, atrevi-me a dizer: "Beatriz, não podemos continuar assim, sabes bem como eu gosto de ti, vamos almoçar juntos e conversar civilizadamente sobre nós, sobre a nossa vida, sobre o nosso futuro". Até me custa a crer que tenha proferido estas palavras. Ainda não tinha tido tempo de me arrepender e já ela respondia: "Qual futuro? Há algum futuro para nós? Para ti, talvez, vives no melhor dos mundos, uma mulher em casa e outra na cama, mas para mim não, já chega, não vou continuar a comer as migalhas que caem da mesa dos outros". O elevador acabara de parar no 4º. Andar, ela avançou aconchegando as listagens como se carregasse algo de precioso e franqueou a porta com tanta determinação que eu tive de recuar para não ser empurrado. Não me atrevi a dizer mais nada e saí atrás dela acabrunhado como um cachorro a quem acabassem de dar um pontapé. Segui para o mesmo corredor, mas em sentido contrário, na direcção do meu gabinete. Entrei atirando com a porta e deixei-me cair na cadeira olhando com rancor a pilha de papéis que inundava a minha secretária. Ainda tentei pegar num papel, li duas ou três linhas, para o largar de imediato e pegar noutro que me parecera mais acessível para o estado em que se encontrava a minha cabeça. A seguir veio outro e mais outro, sem que me fosse possível organizar aquele amontoado de folhas e muito menos dar-lhe o devido andamento. Vogava eu nesta confusão de ideias e de papéis quando o Semedo entrou e, antes mesmo de ocupar o seu lugar, colocou as mãos em cima da minha secretária, inclinou-se levemente para mim e segredou: "A Beatriz acabou agora mesmo de entrar no gabinete do Rogério Marques, parece que foi ele que a chamou, quer confirmar as listagens da Informática com o trabalho que tu apresentaste, pelos vistos tem mais confiança no trabalho da menina do que no teu. Não deixa de ser chato, mas vendo as coisas pelo lado positivo pode ser vantajoso ter uma amiguinha que merece a confiança do chefe". O Semedo é daquelas que injecta o veneno para depois poder ministrar o antídoto.
Senti o sangue a fervilhar-me nas veias só de imaginar aquele sabujo de cabelo untado, com a minha Beatriz sentada na sua frente, cheio de mesuras: "Muito bem D. Beatriz, era mesmo isto que eu pretendia, fez um trabalho excelente". E a Beatriz toda dengosa exibindo para ele os sorrisos que ainda há pouco me negara e a curva apetitosa dos seios generosamente realçados por uma blusa de decote em bico que se lhe colava ao corpo como uma segunda pele. Blusa que eu lhe oferecera para deleite dos meus olhos e não para satisfazer o olhar guloso de um qualquer pindérico mascarado de executivo. Ó que ódio! Ainda se ela não tivesse vestido aquela blusa!
Parece que a Sidónia vai mesmo ser obrigada a deixar o pátio. Como dizem os senhores da Câmara, vai ser realojada. Vai ter casa de banho e outras modernices , mas vão faltar-lhe os vizinhos, o café do Araújo, a retrosaria do indiano, vai faltar-lhe o empedrado da calçada onde passou os últimos quarenta anos da sua vida, vai faltar-lhe quem lhe dê conversa e, sobretudo, quem lhe pague um copo para lubrificar a goela: "Ó mulher deixa-te de lamúrias, não tens com quem dar ao badalo, mas ficas com uma casa nova, deixas aquela espelunca cheia de rachas", digo-lhe eu para a consolar. Ela arregala os olhinhos matreiros e resmunga: " Olha Miro, não vale a pena estares para aí a tentar levar-me na curva porque eu sei o que é bom para mim e onde me sinto bem, é aqui - e batia com o pé no chão - aqui é que eu me sinto bem, lá ninguém me ajuda, ninguém me dá troco, fico para ali arrumada num canto como um traste velho". Ao dizer isto, coçou a cabeça e escaqueirou-se a rir: "Olha que porra! Vendo bem eu sou mesmo um traste velho, um traste velho sem préstimo, sem ninguém, na ideia dos outros já ando a dever anos à cova", "Cala a boca mulher, ninguém tem nada a ver se tens préstimo ou não, ninguém tem nada a ver com o espaço que cada um ocupa neste mundo e o teu tem sido tão pequeno que, de certeza, alguém te deve estar ainda a dever algum bocado". As minhas palavras deram-lhe logo alento para abusar, estendeu um beicinho mimado e pedinchou: "Enquanto não descubro quem ficou com o bocado que me pertence, dá ordens à Filó para me encher um copinho com aquela pomada que está ali na segunda prateleira para ver se ganho ânimo para aguentar a vida lá naquele pombal onde me querem enfiar". A Sidónia é uma velha sabida e leva-me sempre à certa porque sabe que eu não tenho coragem de lhe negar a vitamina . Não custa muito a quem tem pouco repartir esse pouco com os outros, mas a D. Etelvina farta-se de ralhar comigo: "Olhe, Ramiro, quem dá o que tem, a pedir vem. Ainda se fosse para comer, agora para vinho! Você tira do pouco que tem para alimentar vícios?", "Para a Sidónia, o copinho é meio sustento e depois, D. Etelvina, os pobres também têm direito a ter vícios, digo-lhe mais, têm todo o direito a ter vícios, quanto mais não seja para esquecerem a porcaria de vida que levam", " Ora, desculpas! Quem nunca fez nada na vida, também não merece grande coisa, só colhe quem semeia. Eu também nunca fui rica, mas não me agarrei ao vinho por causa disso, agarrei-me antes ao trabalho, mas trabalhar faz calos e estender a mão à caridade é mais fácil!". A D. Etelvina é boa mulher, mas não tolera as fraquezas humanas.
A Judite vai dar-me uma corrida, mas não faz mal, que se lixe! Não é ela que está sempre a dizer que eu sou uma cobardolas, que dou demasiada importância à opinião dos outros? Tenho de contar a alguém senão rebento: "Judite, hoje falei com o gajo, adormeceu no autocarro e eu acordei-o", "Qual gajo? Estás a falar de quem?","O gajo do restaurante, aquele que vem todos os dias no mesmo autocarro que eu. Adormeceu e se eu não o acordasse ia até ao fim da linha. Ouvi-lhe a voz pela primeira vez, e que voz ele tem!". A Judite olhou-me muito séria: "Ó Fernanda, começo a ficar preocupada contigo. Acho bem que te atires de cabeça quando encontrares ou penses que encontraste o teu ideal, mas esse indivíduo ... eu não o conheço, mas tudo leva a crer que deve ter uma vida bem complicada, vê lá, não te metas nalguma enrascada, vai com cautela, olha que esses quarentões não são de confiança, "Ó criatura, eu só estou a dizer que ele tem uma bela voz, ainda não disse que me ia pôr debaixo do homem". A Judite abafou uma risada para não ser ouvida pelo chefão que estava do outro lado da porta: "Não disseste, mas vontade não te deve faltar e também te digo uma coisa, se o baque for muito forte vai em frente, doa a quem doer, acautela-te, mas vai em frente, se achas que vale a pena, arrisca!".
Interrompemos a conversa porque avistámos o Ribeiro da Contabilidade que, sempre que pode, esgueira-se até ao nosso gabinete para poder ver a Judite, inventando sempre qualquer pretexto idiota como procurar alguém que obviamente poderá estar em todo o lado menos aqui: "O Dr. Proença, não viram o Dr. Proença?". A Judite é um bocado cruel no modo como fala com ele: "Oiça lá, ó Ribeiro, não me diga que não sabe que o Dr. Proença foi para o Porto em serviço?". O Ribeiro ficou atrapalhado como um garoto apanhado em falta: "Não, realmente não sabia". Sem levantar a cabeça dos papéis, a Judite continuou impiedosamente: "Então sempre lhe digo que deve ser a pessoa mais mal informada desta empresa". Como ele continuava ali especado na frente dela, esperando qualquer sinal que lhe desse coragem para a convidar, sei lá, talvez para almoçar, a Judite levantou a cabeça e exclamou desabridamente: "Ó Ribeiro, vá lá para a sua secção porque se aquela porta se abre - e apontava a porta do gabinete do patrão - temos sermão e missa cantada. Já sabe que o big boss não quer reuniões na sala das secretárias, quem você procura não está cá, portanto, desande daqui para fora, desculpe lá, mas são ordens". Coitado do Ribeiro! A sua única aspiração é ter uma família, mas foi logo escolher a pessoa errada para fundar essa família pela qual ele tanto anseia. Esta fixação que ele tem pela Judite há-de acabar, tem mesmo de acabar porque, caso contrário, creio bem que ficará a vida inteira à espera e nunca vencerá aquela frustração de só ter tido uma família de empréstimo: "Coitado do Ribeiro, não devias ter sido tão agressiva, ele está mesmo caído por ti, já basta aquele complexo de nunca ter conhecido os pais", "Eu não fui agressiva, Fernanda, mais vale uma verdade dura do que uma mentira suave, eu sei que ele tem um fraco por mim e que é muito bom rapaz, mas não me desperta qualquer interesse, nunca hei-de sentir nada por ele".
Eu já lhe fiz sentir que ele devia tentar esquecer a Judite e lançar as suas vistas para outro lado e lá veio ao de cima o maldito complexo de inferioridade: "Pois é, eu não sou pretendente que lhe sirva, não tenho estatuto, não tenho antecedentes, não tenho atrás de mim uma família como as outras". Senti-me constrangida porque nunca o ouvira falar tão abertamente e porque a sua voz denunciava bem a mágoa que sentia por causa da infância que tivera: "Ó Ribeiro, não fale assim. Você tem de vencer esse complexo, tantas crianças que são criadas sem família! Pelo menos você teve uma família lá na aldeia S.O.S., não foi uma família convencional, mas não deixou de ser uma família que o ajudou a crescer de uma forma saudável. Agora há uma coisa que você tem de ultrapassar, é esse maldito complexo de rejeição", "Não é complexo de rejeição", "É sim, Ribeiro, é complexo de rejeição porque o simples facto da Judite não corresponder aos seus sentimentos, fá-lo logo imaginar que ela o recusa por causa da sua infância. Você não pode continuar com essa atitude perante a vida porque, então, cada vez que alguém lhe recusar alguma coisa, vai sentir-se sempre rejeitado". Ele abanou a cabeça obstinadamente e ripostou: "É tudo muito bonito de dizer quando se teve uma verdadeira família, você não pode compreender porque está a falar de cor, pode dizer o que quiser que não me convence". Eu bem gostaria de tê-lo convencido, mas não consegui. Apesar do panorama que lhe tracei da minha família e de ter afirmado que para ter uma família daquelas, mais valia não ter nenhuma, ele continuou inabalável nas suas convicções e até me criticou: "Não devia falar assim dos seus pais e do seu irmão, não sabe o que está a dizer". Não gostei do comentário, mas no fundo até compreendo o anseio que ele tem de construir a família que provavelmente sempre idealizou quando era criança, o anseio de ter filhos que, na escola, possam falar dos pais da mesma forma que ele ouvia aos outros garotos quando lá andava. A Judite, com o seu notável pragmatismo, afirma: "O Ribeiro pode vir a ter tudo isso, pode semear um exército de meninos por esse mundo fora, mas nunca comigo como parideira", "Nunca é uma palavra demasiado forte. Se conseguires o tal velhinho rico e tiveres a sorte de ele, ainda por cima, ter um prazo curto de validade, ficas rica e viúva em pouco tempo. Já que foste bafejada pela sorte, não te custa nada fazer uma obra de caridade e casar com o Ribeiro". A Judite pegou num pisa-papéis e simulou um gesto de arremesso na minha direcção quando se abriu a porta e o patrão saíu do seu gabinete apanhando-a de braço no ar com a bola de vidro na mão. Ele encarou-a com os meios-óculos ainda mais descaídos do que é costume e resmungou: "Isso é brincadeira ou está mesmo com instintos agressivos?". Apesar do seu habitual à-vontada, desta vez a Judite ficou mesmo atrapalhada, mas procurou disfarçar e, com um sorriso contrafeito, respondeu: "É brincadeira Sr. Dr.", "Foi o que eu imaginei. Em todo o caso, aconselho-a a guardar as brincadeiras para momentos mais oportunos e locais mais apropriados", "Com certeza Sr. Dr. " gaguejou a Judite baixando a bola assassina . Quando ele virou costas, não pude evitar uma risada divertida que contrastava com a carranca um bocado vexada da Judite: "Imagina só que o velho rico que conseguires arranjar lá no tal cruzeiro tem o humor deste e um período de duração alargado, já viste o que te espera?". Ela debruçou-se sobre o teclado do computador e embrenhou-se no trabalho com um seco vamos lá encerrar o assunto .
E ficou realmente encerrado porque quando a Judite assume aquela postura autoritária, não vale a pena insistir e, por outro lado, o meu pensamento já navegava em direcção a outras paragens, mais concretamente, em direcção ao meu sonolento companheiro de transporte que, naquele momento, deveria estar no seu local de trabalho já totalmente desperto à custa de uma bica bem forte. Tentei imaginar o que estaria fazendo, o que estaria pensando, qual o tipo de relação que o ligava à rapariga que o abandonara tão abruptamente no restaurante ... até me atrevi a imaginar que, talvez, também ele estivesse pensando em mim. Embrenhei-me numa toada quimérica, arquitectando sonhos e criando episódios romanescos que puseram a minha cabeça num turbilhão. Felizmente a manhã foi calma e o patrão teve de sair porque se ele estivesse presente, não me furtaria ao vexame de comentários desabridos perante o triste espectáculo que deveria representar a minha expressão aparvalhada, de olhar vago e ausente, totalmente desconcentrada, sem conseguir coordenar ideias nem atinar com qualquer tarefa por mais simples que fosse. O meu estado de alheamento devia ser tão ostensivo que a Judite quebrou o seu voto de silêncio e inclinou-se para mim, fazendo estalar os dedos em frente do meu nariz: "Ei, ei, acorda mulher! Regressa à Terra!". Procurei disfarçar o melhor possível para não trair os meus pensamentos, temendo cobrir-me de ridículo com as insólitas divagações que subitamente se tinham apossado de mim. Comecei a remexer nos papéis atabalhoadamente, fechei a abri gavetas à toa, folheei o mesmo arquivador três ou quatro vezes, carimbei papéis em branco, separei facturas, agrupei-as e prendi-as com clips , voltei a separá-las, voltei a agrupá-las, fazia tudo isto com um ar de espalhafatosa actividade que só a um tolo enganaria. A Judite olhava-me de soslaio e, a certa altura, não se conteve: "Ó Fernanda, tu não estás bem, pois não?" Tens passado a manhã num alvoroço, mexes em tudo e não fazes nada, pareces uma barata tonta. Vê lá se te acalmas antes que eu entre também em parafuso". Fiquei com a cara em brasa, murmurei qualquer coisa sem sentido e, para disfarçar, acabei por sair do gabinete com a desculpa mais prosaica: "Vou à casa de banho".
Tenho de resolver o problema com a Beatriz. Esta zanga está a durar mais do que devia, não posso deixar passar mais tempo, faz-me falta na cama. Desde que nos zangámos, recorri duas ou três vezes à sensaboria trivial que o corpo da Isilda tem para me oferecer. Não é que o seu corpo roliço não esteja ainda em estado apetecível para um homem, mas o seu desejo pela minha pessoa deve ser tão frouxo que sempre que me abre a pernas fá-lo com o tédio de quem está a prestar um serviço cívico e os únicos suspiros que consigo arrancar-lhe são os suspiros de alívio quando saio de cima dela.
Agora estou reduzido às recordações das cenas voluptuosas que vivi no apartamento da Beatriz. Meu Deus, que imaginação ela tinha! Conseguia espevitar todas as fibras sensíveis da minha personalidade indolente: "És um preguiçoso, Raúl Freitas, és um preguiçoso, mas a tua valquíria arranjou uma brincadeira nova e não vai querer meninos preguiçosos" exclamava ela quando eu caía pesadamente na cama, lamuriando: "Ai filha, hoje estou estoirado, aquela Repartição dá cabo de mim". Eu não estava assim tão estoirado, mas nada me excitava tanto como fechar os olhos e oferecer o meu corpo inerte ao arrojo sensual e libidinoso da minha valquíria . Que mãos!Que perícia! Habituei-me de tal maneira à criatividade truculenta da Beatriz e à lascívia das suas travessuras que, quando tenho de tomar a iniciativa, fico tão desajeitado como um rapazinho imberbe no seu primeiro dia. Deve ser por causa disso que não consigo arrancar à Isilda mais do que suspiros de alívio, da mesma maneira que não consigo arrancar a Beatriz da minha cabeça. Ultimamente, ela tinha decaído um pouco, já não se empenhava tanto em trabalhar a matéria que eu despojadamente lhe oferecia. A obsessão da maternidade estiolava a sua genealidade, os anseios de uma pacata e burguesa vida familiar estavam a desvanecer o encantamento picante da nossa relação, mas eu ainda tenho esperança de recuperar a minha antiga vida, não consigo imaginar-me reduzido à lassidão enfastiada da Isilda quando abre as pernas para me receber e às enxaquecas de recurso que pretexta para dar espaçamento às nossas actividades de alcova. Meu Deus, como a vida é complicada! Estava tudo tão equilibrado entre as minhas duas vidas, tinha conseguido construir uma empolgante existência dupla sem alterar a rotina que me é tão cara e, de repente, parece que se abriu uma janela deixando entrar rajadas ameaçadoras contra as quais não tenho energia para lutar. Apetece-me recuar no tempo, voltar à minha infância quando, no Carnaval, mascarado de Super-Homem imaginava que era invencível e sonhavam atravessar os céus em missão de salvamento da Humanidade. Já então me refugiava na puerilidade extravagante dos sonhos para colmatar a falta de iniciativa e ultrapassar a ausência de uma vontade robusta. Agora percebo por que razão, ano após ano, eram infrutíferos os esforços da minha mãe para me fantasiar de outra maneira. Sob a capa do homem voador, eu perdia todos os medos, afastava o pavor do desconhecido, não receava o desafio do inesperado. Pelo menos uma vez no ano, sabia lidar comigo mesmo.
Nos braços da Beatriz, eu fui encontrar um vigor que julgara inatingível, ela devolveu-me a confiança e a virilidade que, no meu íntimo, considerava enfermas pela esterilidade dos meus espermatozóides. O casamento com a Isilda mais não fizera do que adensar os pavores e avolumar as dúvidas de uma infância mal gerida. As fantasias da Beatriz foram a panaceia para as minhas debilidades, era como se eu tivesse voltado a vestir a capa do Super-Homem dos meus tempos de menino.
Dia após dia, juro a mim próprio que vou resolver o problema com a Beatriz, todos os dias expresso mentalmente o mesmo propósito - É hoje, hoje vou resolver o problema com a Beatriz, não passa de hoje, assim que chegar ao serviço vou ter uma conversa muito séria com ela . O problema é que mal cheguei ao serviço, já tinha em cima da minha secretária uma folha de bloco com as garatujas do Chefe de Divisão - Sr. Raúl Freitas tenho urgência em falar consigo, venha ao meu gabinete imediatamente . Lá estava ele à minha espera, sentado à secretária todo emproado, fazendo girar, alternadamente para a direita e para a esquerda, a sua cadeira preta de espaldar alto onde recostava, em atitude de estudada negligência, a cabeça de cabelos lisos, puxados para trás e crivados de gel. Imaginei-o todas as manhãs mordendo a língua enquanto, aplicadamente, de pente em riste, se entregava à árdua tarefa de transformar uma trunfa eriçada e rebelde num penteado convencional de executivo de sucesso. Imbecil presumido! Tudo nele é estudado, não tem uma única atitude espontânea, passa a vida a representar o papel de homem seguro, confiante, auto-suficiente, mas na realidade é um timorato com a cabeça povoada de fantasmas. O que eu daria para poder uma vez na vida esmurrar aquela boca desdenhosa que parece estar sempre a arremessar-me com a sua forçada sobranceria de ressabiado - Eu sou o filho do Marques, mas subi na vida enquanto tu és um medíocre que nunca passou da cepa torta . Ora, que grande coisa! Ser Chefe de Divisão num serviço da Administração Pública. No fundo, também ele é um falhado. Cursou Direito como o pai tanto desejava, mas não conseguiu ingressar na magistratura judicial, como tinham sonhado pai e filho: "É o que lhe digo Dr. Freitas, se o meu rapaz conseguir fazer o curso de Direito, e vai conseguir se Deus quiser, há-de seguir a carreira de juiz, sabe que o rapaz tem mesmo vocação para aquilo, desde pequeno que pende para tudo o que tem a ver com tribunais, sempre que a televisão passa filmes com julgamentos é vê-lo ali todo atento, até parece que bebe as palavras do juiz, eu já o estou a imaginar a bater com o martelinho e com aquela cabeleira ... ", "Ó Marques, os juizes portugueses não usam cabeleira, isso é acessório que faz parte da indumentária dos ingleses". O Marques pareceu um tanto desiludido: "Á, não usam? Mas usam aquelas vestes pretas, a sotaina ou lá o que é, não usam Dr. Freitas?", "Usam, mas não se chamam sotainas, chamam-se becas, os padres é que usam sotainas", "O Sr. Dr. lá sabe essas coisas, também não é para admirar, tem estudos e eu não", "Não é só isso, o meu pai era juiz". O Marques fez um ar de espantada comiseração: "Admira o Sr. Dr. não ter seguido a mesma carreira, o seu pai deve tir tido muita pena, ainda se o neto ... mas o Raúlzinho não tem vocação para o estudo, é uma pena!" e o meu pai que já não sabia o que é que o exasperava mais - se as boas notas do filho do Marques ou a fraqueza das minhas - respondeu desabridamente: "Olhe Marques, essa ideia de que os filhos são seguidores do percurso dos pais é completamente absurda. Se assim fosse, o seu filho estaria condenado a um lugarzinho de oficial administrativo como você". O Marques engoliu em seco, mal disfarçando o despeito e a humilhação suscitados pelo comentário do meu pai: "Infelizmente os meus pais não tiveram posses para me porem a estudar, mas com o meu Rogério não vai ser assim, não sou rico, mas o que tenho dá para ele se doutorar ". O filho do Marques conseguiu o almejado canudo e o pai derramou lágrimas de comoção ao vê-lo de braço no ar sacudindo freneticamente a pasta recheada de fitas vermelhas naquela festa tão linda onde se juntou a estudantada toda , como ele não se cansava de repetir.
Apesar do diploma, o Rogério Marques não deixa de ser um fracassado. Não conseguiu o seu lugar na jurisprudência, não conseguiu o desejado martelinho e, na ausência de réus a quem impor a sua autoridade de julgador, aqui estou eu para alancar com o peso das suas expectativas defraudadas: "Os mapas do pessoal apresentam várias discrepâncias relativamente aos do ano passado, tem de reformulá-los". Com as orelhas em brasa, interrompi-o: "Houve aposentações, transferências para outros Organismos ... ". Ele não me deixou prosseguir e atalhou abruptamente: "Se houve alterações, deveria ter anexado uma nota justificativa devidamente fundamentada, mas confirma-se a minha opinião a seu respeito - iniciativa não é o seu forte". Estendeu-me os mapas com um simulacro de sorriso tão desdenhoso que me deu ganas de apoiar as mãos na sua nuca luzidia e ... zás! Esborrachar-lhe a fuça no tampo da secretária. Em vez disso, segurei as folhas de papel, rodei sobre os calcanhares e dirigi-me para a porta, mas antes de ter conseguido alcançar a maçaneta ainda fui matraqueado pelo comando irritante da sua voz agastada: "Preciso disso pronto até às onze e meia. Às doze tenho uma reunião com o Director de Serviços". Saí sem me dar ao trabalho de responder e fui direito à minha secretária para onde atirei, enraivecido, as folhas de papel enquanto remordia, entre dentes, impropérios contra o sacana do Chefe de Divisão . Sentei-me com estrondo ignorando, deliberadamente, o Semedo que me olhava de esguelha ansioso por saber o que se passara. Tentei concentrar-me na elaboração da nota justificativa, continuando a ignorar o olhar inquisidor do Semedo e o pigarrear da sua garganta que mais não era senão a tentativa infrutífera para captar a minha atenção. Mas ele era tudo menos discreto e acabou por abordar-me com o assunto do costume: "Pst ... ouve lá, pá, já resolveste o problema com a Beatriz?" e perante o meu encolher de ombros: "Não te fiques assim, olha que o tempo passa num instante e - fez estalar os dedos - quando damos por ela, já não há nada a fazer, arranja um filho, ninguém te pode levar a mal, casamento com mulher que não pode procriar está condenado à partida, falta o principal, um lar sem filhos é como um corpo amputado", "Ó Semedo, neste momento não estou minimamente interessado na procriação, já me basta estar de cabeça cheia com a porra dos mapas do pessoal, esse merdas do Rogério Marques quer isto pronto até às onze e meia, parasita de merda!Não sabe fazer a ponta dum corno, mas dá-se ao luxo de criticar o trabalho dos outros". Com olhar atento sobre a porta, o Semedo sussurrava: "Fala baixo, pá, dizem que o gajo costuma escutar atrás das portas", resmunguei: "Não admira, com aquele ar de ratazana dos canos ... o sacana tem todo o estilo de bufo".
Apodar o Chefe de Divisão com impropérios, aliviava-me a tensão nervosa, mas não dava corpo à tarefa que tinha pela frente, por isso, meti mãos à obra e concentrei-me na nota justificativa devidamente fundamentada que a ratazana iria apresentar ao Director de Serviços com mesuras de serviçal: "Aqui tem Sr. Director, como poderá verificar, anexei uma nota justificativa devidamente fundamentada, pois verifiquei haver alterações de vulto relativamente ao ano transacto".
Cheguei a casa aos tropeções depois de ter desabafado as mágoas com a Sidónia no cafá do Araújo. Quando tentava encontrar a porta do meu quarto, dei de caras com o Licínio que me agarrou com energia e me orientou até à cama onde me deixou estatelado, com um suspiro de alívio. Ainda o ouvi dizer: "Ó homem, em que estado você vem!". Não me lembro de mais nada, mas no dia seguinte ele contou-me que felizmente estava acordado, o que foi uma sorte porque pôde evitar que eu errasse a porta e entrasse no quarto da D. Etelvina. Tentei parodiar com a situação, mas no fundo sentia-me envergonhado por ter aparecido naquela figura diante dele. Comecei por dizer umas chalaças, mas acabei por lhe contar tudo - a história da Zulmirinha, a tristeza que eu sentia por causa daquele fim tão trágico e a desolação daquele funeral. O Licínio deixou-me falar à vontade e quando acabei deu-me uma palmada no ombro e disse: "O fim é sempre triste, Ramiro, mas olhe que às vezes é mais difícil viver. Essa desgraçada já não tinha nada a esperar da vida, só sofrimento". Ele até tinha razão, mas o que eu achava mais triste era uma pessoa abalar deste mundo daquela maneira, amaldiçoada pelo irmão que até se mostrava aliviado por a ver metida naquele buraco fundo: "A história já é velha, Ramiro, quando o cão é sarnento todos lhe atiram pedras. Há pessoas que são mesmo assim e olhe que não são poucas, só estão presentes nos bons momentos, nas horas adversas calcam-nos com a bota em cima. Esse homem toda a vida deve ter sentido vergonha pelo facto da irmã ser prostituta e nunca pensou em lhe deitar a mão, mas apareceu agora na esperança de colher algum daquele que ela ganhou à custa das vergonhas que lhe fez passar, só que as contas saíram-lhe furadas. Até tem a sua piada, involuntariamente foi uma partida que a Zulmirinha pregou ao irmão".
Gostei de ouvir o Licínio. Nunca o julguei capaz de falar desta maneira, sempre o achei um rapaz frio, virado lá para as coisas da Biologia e sem interesse pelos sentimentos das pessoas. Ainda por cima, criado em Lamego e com padres na família porque a padralhada fala muito no perdão dos pecadores, mas quando se trata de pôr em prática a caridade cristã a história muda de figura. O padre lá da minha terra até se recusava a acompanhar os funerais daqueles que não morriam em estado de graça . A D. Etelvina que é boa mulher, mas cheia de preconceitos, diz que ele tinha muita razão porque quem viveu sempre de costas voltadas para Deus e morreu sem ouvir a sua palavra também não merecia ser acompanhado por um dos seus ministros na Terra . Neste aspecto, estamos sempre em desacordo porque o padre é um homem como os outros, não é Deus para poder avaliar quem é que morre em estado de graça: "Imagine, D. Etelvina, que alguém se arrepende dos pecados nos seus últimos momentos e já não está em estado de se manifestar? Quem é o padre para decidir quais são aqueles que merecem ser perdoados?", "Deus se encarregará de decidir se ele merece ou não ser perdoado, mas o sacerdote não pode adivinhar o que vai no pensamento dos outros e está no seu direito de não acompanhar aqueles que, em vida, sempre renegaram Deus e recusaram os preceitos da Igreja". Eu acredito em Deus, mas essa história de Céu e Inferno é que não se encaixa muito bem na minha maneira de ser porque, se pensarmos bem, no Inferno estamos nós enquanto andamos cá na Terra. Será que depois de andarmos por aqui a penar tanto tempo, Deus ainda tem coragem de pespegar com as nossas alminhas no Inferno? E há ainda a história do Purgatório. A minha velha costumava dizer que raro é aquele que antes de ir para o Céu não tem de passar primeiro pelas penas do Purgatório e, por isso, ela rezava tanto pelas alminhas que lá estavam.
O Licínio teve educação religiosa e tem dois tios padres, mas o estudo da Biologia deve-lhe ter dado volta ao miolo porque as ideias dele a respeito de Deus são diferentes de tudo o que tenho ouvido. O Licínio e as suas ideias andam a baralhar o esquema todo que eu tinha encaixado na mona. Aquilo que ele diz sobre as nossas origens e a criação de outros Mundos, dá que pensar, são coisas muito complicadas, era bem mais simples descender de Adão e Eva e viver num Mundo onde Deus olhasse por nós. Assim já não sei o que pensar, nem no que hei-de acreditar. A D. Etelvina põe tudo nas mãos de Deus Ele castiga quando deve e perdoa quando entende . O Licínio é de poucas falas e, em geral, não entra em discussões destas, mete-se no quarto a marrar nos livros ou então junta-se com os colegas na casa dum e doutro para prepararem os trabalhos lá do curso, mas desta vez botou cá para fora as suas ideias: "Ora, D. Etelvina, eu não sei se Deus existe ou não, mas caso exista, está acima de tudo e de todos, vela pelo equilíbrio e mantém a harmonia do Universo enquanto nós somos como formiguinhas que habitam uma parte minúscula desse Universo, o nosso planeta não é mais do que um grãozinho de areia perdido na imensidão do espaço. Somos tão pequenos que o olhar de Deus nem consegue alcançar-nos. Eu recuso-me a imaginar um Deus à nossa escala, observando tudo o que fazemos, somos demasiado insignificantes para que Ele se aperceba da nossa existência".
A D. Etelvina ficou apavorada ao ouvir tamanho desmando - um Deus que não dava conta dos nossos actos, nem atendia as nossas necessidades?! De mãos postas em direcção ao Céu, temendo talvez que ele lhe caísse em cima, exclamou vermelha de indignação: "Ó Licínio, isso é uma blasfémia! Como é que você pode dizer que Deus não nos vê? Deus está em toda a parte, vela por nós e dá conta de todas as acções que praticamos, as boas e as más, ninguém escapa à justiça divina". O Licínio alargou os braços e respondeu: "Que grande livro Ele teria de ter para registar todos os pecados da Humanidade!", "E a alma? Também não acredita na alma? Será que você é daqueles que pensam que tudo acaba com a morte e não há castigo nem recompensa?", "A morte é a passagem de um estado para outro, a matéria decompõe-se e as partículas partem para outras formas de vida, transformam-se noutros elementos da Natureza". Mas a fé da D. Etelvina não se deixa abalar: "Isso é a matéria, mas a alma, a alma é imortal e é isso que nos distingue dos outros animais", "O que nos distingue dos outros animais é o facto puramente acidental de termos evoluído de forma diferente, a alma é a invenção arrogante de quem rejeita as suas próprias origens, quer queiramos quer não, os nossos antepassados mais remotos soltavam grunhidos e andavam de quatro". Esta foi demais. De cabeça bem alçada e o dedo esticado na direcção do herege , ela exclamou: "Olhe Licínio, se você quer descender do macaco é lá consigo, que lhe faça muito bom proveito, mas eu não! Sou um ser humano criado por Deus, à sua imagem e semelhança, com as imperfeições de todo o ser humano, mas capaz de escolher entre o bem e o mal, é essa a liberdade que Deus nos deu e que muitos não sabem usar". O Licínio podia ter ficado por ali, mas não, tinha-se-lhe soltado a língua e até parecia que sentia prazer em espicaçá-la: "Ora aí está uma coisa que eu não entendo - por que razão um ser perfeito iria criar uma obra imperfeita? Só encontro uma explicação, Ele criou-nos num dia em que estava de mau humor, o que não se admite, um ser perfeito só deveria produzir obras perfeitas. Seria um sossego para nós e para Ele". Antes que ela tivesse tempo de lhe responder, levantou-se, deu-lhe uma palmadinha no braço e acrescentou: "Com esta me vou, amanhã tenho uma prova e ainda quero estudar qualquer coisa antes de me deitar, reze por mim já que eu não posso". E lá se fechou no quarto.
Numa coisa o Licínio tem razão. Se tudo foi criado por Deus, se é Ele que comanda tudo e que orienta as nossas vidas, não tem feito lá grande trabalho. Este mundo anda na maior das embrulhadas, uns fazem rebentar guerras em tudo o que é sítio, outros espalham gases para a atmosfera e envenenam rios, se Deus foi o Criador de tudo, não devia consentir que os homens destruíssem a sua obra. A Sidónia diz que é melhor eu não pensar nestas coisas porque não vou chegar a conclusão nenhuma e ainda posso dar em maluquinho: "Vai por mim Miro, não penses nessas coisas complicadas de Deus e do Mundo porque por muito que penses, nunca vais entender nada, são mistérios, homem, são mistérios, os espertos estudam, estudam, põem-se para aí com invenções de que o mundo começou assim e assado, mas bem sabem eles como é que foi!". A velha é capaz de ter razão porque as explicações do Licínio também não me convencem muito, ele fala do princípio das coisas como se tudo tivesse acontecido num grande caldeirão onde chocalhava um caldo desatinado sem forma nem sentido para, de repente, estoirar em todas as direcções espalhando e juntando poeiras ao acaso até formar este Mundo e os outros Mundos que ninguém conhece. Claro que isto é a minha maneira de falar porque o Licínio usa outros termos, emprega umas palavras que eu não consigo repetir, mas isso não quer dizer que não tenha percebido o suficiente para chegar à conclusão de que estamos perdidos e isolados na enormidade do espaço: "Ó Sidónia, tu sabias que a Terra anda a flutuar no meio de pedregulhos maiores que cidades? Se calha haver um choque ... pfuuu! Vai tudo para o maneta, acaba-se o Mundo", "Deixa lá que também não se acaba grande coisa, mas enquando dura vai-se comendo e bebendo, principalmente bebendo. A propósito de bebida, não pagas qualquer coisa aqui à tua amiga que está cheia de securas?", "Mete a boca na torneira que isso passa, "Estás a ficar muito soberbo desde que acompanhas com esse tal estudante", "Tu é que estás a ficar muito abusadora, pensas que isto é algum poço sem fundo?Nesta altura do mês, já só dá para beber fiado", "Fiado ou não, ele escorrega bem de qualquer maneira, só que a mim ninguém fia a ponta dum corno". Quando quer e quando precisa, a Sidónia consegue tocar o coração duma pessoa, dar de beber a quem tem sede é uma obra de caridade, não está escrito se é água ou vinho. Levanto o braço na direcção do balcão: "Ó Filó, serve aqui a Sidónia e põe na minha conta". Ela lançou-me um olhar que tinha tanto de agradecido como de matreiro: "Obrigada Miro, és um santo, estava tão precisada deste alento, ainda há bocado tive uma tontura que vi tudo baldeado à minha volta, faltaram-me as forças e foi a falta disto - ela batia com o dedo no copo - dizem que faz mal, mas pela parte que me toca, o que me faz mal é vê-lo longe, pode fazer mal a alguns, mas para mim é meio sustento, não há melhor vitamina", "Ó Sidónia, tu és uma velha podre de feia, mas até tens umas ideias que são de aproveitar, ali a doutora da farmácia bem pode mudar o cartaz que tem na montra, em vez do frasco das vitaminas põe lá um pipo de vinho com esta frase por baixo - Deixe as drogas dos comprimidos e meta-se nos copos que é mais saudável ". Eu ria, mas ela, pelo contrário, estava muito séria e, levantando um dedo sentenciou: "Não te vás sem resposta que o meu pai que Deus tem só foi numa vez ao médico e nunca mais lá voltou porque ele lhe receitou uns comprimidos e disse - Você vai tomar estes comprimidos, mas enquanto durar o tratamento não pode beber . O que ele havia de ter dito! O meu pai deixou lá a receita e respondeu ao médico - O Sr. Doutor vai-me desculpar, mas isso não é tratamento para um homem de trabalho, eu posso passar sem os comprimidos, mas sem a pinga é que não aguento . Nunca mais foi ao médico e morreu cheio de saúde", "Cheio de saúde, mulher? Se tivesse cheio de saúde não tinha morrido!", "Cheio de saúde, sim, meu palerma, morreu de velhice, quem em novo não vai de velho não escapa, o homem não podia ficar cá para semente, mas que foi rijo e são até chegar a sua hora, isso é que ele foi!". Não sei porquê veio-me à lembrança a Zulmirinha, tão escanzelada, com aqueles olhos esbugalhados, o queixo bicudo e a boca mirrada pela falta de alguns dentes. A Sidónia não gosta que eu fale nela: "Xô, xô! Cala essa boca, deixa os mortos descansados que eu não os quero por cá a apoquentarem-me", "Ó mulher, os mortos não fazem mal a ninguém, "Mas andar a chamar por eles, também não dá saúde nenhuma - e aponta para o copo - isto sim, isto é que dá saúde, vê lá como eu estava toda azamboada, tinha a cabeça a rodar que nem um cata-vento e assim que esta pinga abençoada escorregou cá para dentro, fiquei como nova". A Sidónia é uma velha sabida, não se importa de falar no pai, na mãe e, às vezes, até fala no defunto que lhe ia às trombas, mas quando se trata da Zulmirinha fica toda arrepiada: "Ouve lá, Sidónia, tu tens medo que a Zulmirinha te venha cá apoquentar? Andavas sempre a dizer mal dela, não é? E agora tens medo". Ela estremeceu: "Eu nunca disse mal dela, dizer a verdade não é dizer mal, ou és capaz de negar que ela foi sempre uma grande pu ... abrenuncio!Não se fala mais nela e pronto, paz à sua alma para onde quer que tenha ido".
Fazendo fé nas teorias do Licínio, os restos da Zulmirinha espalharam-se por aí, se calhar até andam por cima das nossas cabeças sem que a gente dê por isso. O monte de ossos que a pele mal segurava ficou lá no buraco escuro, mas deve realmente haver em nós qualquer coisa que se liberta dos restos condenados à podridão, faz-me bem pensar que assim seja, fazia algum sentido vir a este mundo para acabar tudo com uns palmos de terra em cima? Se fosse assim, não havia nada que me destinguisse dos rafeiros lá da rua e dos gatos da Sidónia. A D. Etelvina deve ter razão quando diz que somos um produto de Deus e se Ele nos criou é porque tem algum destino para nos dar, ninguém se dá a tanto trabalho para nada, não fazia sentido. Se virmos bem, tudo na Natureza tem a sua utilidade, o homem encarregou-se disso, ora por que razão iria Deus criar o homem se não tivesse um destino a dar-lhe? Não sei o que será, mas que Ele deve ter alguma coisa em mente, lá isso deve. É bom acreditar que assim seja porque é bastante triste não avistar mais nada para além do fim e daquele buraco escuro para onde nos atiram à pressa.
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